por Ariane Abdallah
Tpm #90

Mulher mente melhor? Mergulhamos na relação da mulher com a mentira e descobrimos verdades

Mentira, você sabe, é aquilo que não é verdade – mas não necessariamente é o oposto dela. Muitas vezes só não é “bem assim”, trata-se de outra maneira de interpretar os fatos. Independente do disfarce, a mentira faz parte das relações humanas desde que o homem é homem – e, em pequenas doses, é uma espécie de regra social do bem viver, já que evita explicações longas, respostas desagradáveis ou histórias sem graça. E, embora a habilidade seja unissex, nós, mulheres, levamos a fama de ser as verdadeiras detentoras do “dom de iludir”. É só lembrar de Sherazade, que passou mil e uma noites embromando um homem com suas histórias, das composições de Noel Rosa, Chico Buarque e Caetano Veloso e da cara de “quem, eu?” da vilã da novela das oito. Mas, quando a questão foi levantada por uma especialista – a editora convidada desta edição, Tai Castilho, fundadora do Instituto de Terapia Familiar de São Paulo, que há 20 anos recebe casais em seu consultório –, a Tpm resolveu tirar a limpo a história.

Mais do que mulheres mentirosas, descobrimos uma sociedade que não aceita a verdade feminina. Porque, quanto mais aclamada a liberdade dos tempos modernos, mais escravas ficamos de quesitos que garantam essa condição. Por exemplo, não pega bem uma mulher moderna e livre envelhecer. “A mentira é um sinal de submissão. Uma mulher que assume seus 50 anos é considerada velha. Um homem de 50 é charmoso”, resume a atropóloga Mirian Goldenberg, professora da UFRJ e autora de Toda Mulher É meio Leila Diniz.

Sem parar pra pensar em tantas questões, com certeza você também conta no dia a dia mentiras “inocentes, que não fazem mal a ninguém”. Pense nas vezes que falou para o garoto no semáforo “não tenho dinheiro”. Ou quantas vezes disse “que delícia”, sobre uma refeição que te embolou o estômago, e “estou chegando,” quando ainda estava em casa. “A dissimulação tem utilidade social”, explica a psicóloga e professora da PUC-RJ Mônica Portella, no livro Como Identificar a Mentira – Sinais não Verbais da Dissimulação. Mas as situações e as intenções de uma mentira dependem do sexo de quem conta. Por exemplo, é difícil imaginar um cara falando que pagou por um produto menos do que realmente pagou, escondendo a idade, diminuindo o peso ou dizendo para uma colega de trabalho: “Nossa, você ficou linda com esse cabelo!”. São as populares mentiras “do bem”, que, além de poupar você de explicar o que parece incompreensível para o outro ainda o preserva de lidar com verdades indigestas. “Ah, mas essas coisas não são mentiras.”, defendem as entrevistadas para esta matéria.

 

 

A verdade é seu dom de iludir
De fato, há controvérsias na hora de classificar as inverdades que as mulheres contam – socialmente aceitas e até esperadas. “A mentira feminina passa pela discussão sobre o preço real de uma bolsa, pela implicação exata de uma afirmação sobre aquela vizinha ou pelo grau de confiança que uma mulher pode ter na outra. Inexatidão, irrealidade e ilusão aparecem combinadas na mentira das mulheres”, resume o psicanalista Christian Dunker, doutor pela Manchester Metropolitan University e professor da USP. Julio Cesar*, delegado do Departamento Estadual de Investigações Criminais, praticamente um detector de mentiras em pessoa – há 23 anos interroga suspeitos –, é mais flexível: “Mulher não mente, administra a verdade”.

A antropóloga Mirian Goldenberg não vê mérito na habilidade observada pelo delegado. Ao contrário, ela acredita que dissimulamos para sermos aceitas e aprovadas pelos outros. Durante as pesquisas das diferenças entre brasileiras e alemãs, para seu livro Coroas: Corpo, Envelhecimento, Casamento e Infidelidade, ela comprovou que esse comportamento é típico de países subdesenvolvidos. “Na Alemanha, se você ficar de gracinha, sorrir muito ou elogiar demais, vão te achar uma débil mental. No Brasil, a gente dá beijo em quem não quer dar, chama de queridinha, sorri para quem odeia, é a cultura de dar um jeitinho para conseguir as coisas.”

As mentiras masculinas, por sua vez, têm uma pegada mais “contar vantagem”. É como aquela piada sobre um cara que transa com uma mulher linda e gostosa numa praia deserta. Qual a graça, se não tem testemunhas? “Com medo de não serem considerados suficientemente homens, eles se apresentam como um super-homem. Nesse caso, as mentiras são defensivas. Eles mentem para ‘ter’”, compara o psicanalista Christian Dunker. Sendo assim, dizer que pagou R$ 500 num sapato é motivo de orgulho masculino, sinal de que são bem-sucedidos e podem se dar a esse luxo. Enquanto uma mulher provavelmente teria que gastar saliva para convencer as amigas de que não ficou louca por escolher usar seu próprio dinheiro como bem entende. A advogada Juliana*, de 27 anos, ficou viciada em mentiras como essa. “Nas minhas histórias, tudo sempre está 50% off”, assume. Sem estranhar as frequentes queimas de estoque das lojas de roupas, sapatos ou brinquedos, Roberto*, marido de Juliana, nunca questionou a mulher. Ela própria não se dava conta do quanto inventava. Mas não esquece da maior mentira de sua vida, quando pediu R$ 4 mil ao pai, dizendo que era para a formatura da faculdade. “Torrei tudo na Forum.”

Há ainda mentiras que só mulher pode contar por questão de genética. Por exemplo, engravidar depois de garantir que não estava no período fértil ou simular orgasmos múltiplos quando está é pensando no próximo filme a que quer assistir. A produtora Maria*, de 28 anos, assume a encenação. “Claro que finjo o orgasmo! Toda mulher finge”, acusa. Ela justifica a farsa alegando que, se não fizer isso, os homens ficam de cara feia. “E olha que muitas vezes não tenho prazer por incompetência do cara”, desabafa. O psicólogo Jacob Pinheiro Goldberg, autor dos livros Monólogo a Dois e Eva Será Deus, compreende o comportamento de Maria numa sociedade em que a mulher ainda estaria no papel de coadjuvante. “O homem, quando não quer transar, por impotência ou inapetência, mostra desinteresse claro. Já a mulher tem que dizer que está com dor de cabeça”, observa ele.

Em geral, o argumento que sustenta as mentirinhas das mulheres segue esta linha: proteger a si mesma e aos outros de verdades desagradáveis. Até no trabalho Maria solta suas mentirinhas. Como é responsável pelo caixa de uma revista, diz aos chefes que já estourou o orçamento antes de isso acontecer para evitar que estoure de verdade. Ou seja, é uma mentirinha “para o bem”.

Te perdoo por te trair
Nessas de proteger e evitar discórdias, aprendemos cedo a mentir em solidariedade ou só para saber o que o outro quer, pensa e espera de nós. Esse método, também conhecido como manipulação, o delegado Julio Cesar conhece bem. Ele conta que, durante os interrogatórios, a mulher é mais sensível, assimila mais o ambiente e manipula para onde vai a conversa, enquanto o homem se trai com o olhar e deixa transparecer as emoções. Apesar das “boas intenções”, Christian Dunker acredita que a mentira da mulher é mais perigosa que a do homem. “É muito mais letal porque não sabemos o que querem.”

A psicanalista Maria Marta Assolini, professora do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, reconhece o comportamento “perigoso” em suas pacientes. “A mulher manipula para saber que papel deve cumprir e, assim, mente a mentira que o parceiro quer ouvir”, explica. Quantas brigas de casal explodem quando as mulheres começam com os clássicos: “Você disse isso, mas quis dizer aquilo, pensa que eu não sei?”; “Você está com uma cara estranha”, enquanto o homem simplesmente não entende de onde surgem essas afirmações. Ao agir assim, estamos projetando neles uma característica da mentira que, segundo Dunker, é tipicamente feminina: o blefe. “Por causa dessa habilidade, se os campeonatos não fossem tão infantilmente masculinos, no pôquer e no truco só haveria campeãs”, garante o psicanalista. O delegado Julio Cesar assina embaixo: “Por experiência própria, o homem, ao interrogar uma mulher, se sente inferior por saber que está lidando com alguém mais inteligente”, confessa.

Tai Castilho acredita que as diferenças começam na sexualidade: “O homem tem o pênis, que não o deixa mentir. Não dá para ele fingir que está excitado se não estiver ou vice-versa, é tudo exposto”. Enquanto o corpo da mulher já nasce com a possibilidade da dissimulação, do disfarce. “A mulher mente tranquilamente porque tem essa prática com a própria sexualidade”, afirma ela. A psicanalista Maria Marta completa: “Quando a menina, ainda criança, descobre a diferença anatômica, sente-se cerceada, algo lhe falta, é a famosa ‘inveja do pênis’”. Como uma espécie de compensação, é essa mesma falta que, logo cedo, faz a mulher aprender inúmeras técnicas de dissimulação. Tai confirma a teoria depois de ouvir queixas e confissões de centenas de casais em duas décadas de atendimento – e de ela mesma esconder do marido o curso que fez no teatro Oficina, nos anos 60, já que isso não era bem-visto para moças comprometidas. Segundo ela, as mulheres podem passar a vida sem serem desmascaradas em suas traições.

Tatiana*, de 33 anos, viveu exatamente isso nos cinco anos de seu primeiro casamento. Ela pulava a cerca com pretendentes que iam do arquiteto ao motoboy do banco em que trabalhava. Para driblar o marido, apelava para as “mentiras clássicas”: dizer que ia trabalhar até mais tarde ou que ia sair com amigas e só voltava às sete da manhã porque uma delas ficava contando problemas amorosos. O cara nunca desconfiou. Ao contrário, ainda a recebeu de volta de uma viagem, em que ela conheceu mais um amante, com flores e velas. “Talvez porque eu chegasse sempre com uma cara lavada daquelas!” Também porque ela não dava bandeira. Tomava o cuidado de atravessar a cidade toda vez que ia encontrar “os outros”. “Um homem não teria esse cuidado porque não pensa, faz de qualquer jeito, vai lá e paquera sua amiga”, deduz ela.

A malícia de toda mulher
Tai concorda. Embora, ao contrário das mulheres, eles sejam prós em manter casos com a mesma pessoa por anos, não sabem disfarçar. “Os homens deixam rastros, como se quisessem ser descobertos”, revela a terapeuta. A diretora de arte Danuzza, de 27 anos, encontrou os tais “rastros”. Ela estava saindo com um cara havia três meses quando deu um Google em seu nome. Foi parar no blog da. namorada dele e entendeu tudo. Em um Dia dos Namorados, ele havia dito que iria para a casa dos pais, no interior de São Paulo, mas ligou para Danuzza do trabalho. Além disso, deixou à mostra uma carta da namorada, em que a menina comemorava os seis anos da relação – como Danuzza constatou ao ler enquanto ele tomava banho –, e uma mochila com roupas femininas na sala, que ele disse ser da namorada do amigo. Depois da blitz, o cara acabou confessando tudo. E, apesar de não tê-lo dispensado, Danuzza desdenha: “Você acha que uma mulher que traísse daria tanta bandeira?”.

Mulheres que traem, como Tatiana, em geral, não se deixam descobrir, mas ainda precisam se convencer, com alguma desculpa, de que não é só tesão, “tem algo mais”, um motivo nobre que não a coloque no lugar de promíscua. Em uma pesquisa realizada pela antropóloga Mirian Goldenberg, em que ela entrevistou 1.279 homens e mulheres cariocas – dos quais 60% dos homens e 47% das mulheres disseram que já traíram –, os motivos para trair de cada um evidenciam as diferenças. Os homens alegavam ser da natureza deles, que tiveram tesão e pronto. Já elas culpavam o marido, dizendo que faltava romance, atenção e carinho na relação. “A mulher não pode dizer simplesmente que estava com desejo sexual. A sociedade não aceita uma mulher inteiramente verdadeira”, conclui a antropóloga.

Mas a “sociedade” não precisa se preocupar. Com a tão aclamada liberdade feminina, que começou com a entrada da mulher no mercado de trabalho no início do século passado, só estamos ampliando nosso estoque de mentiras. Se antes a mulher dissimulava para não frustrar a exigência de caber no papel mãe-esposa, hoje ela tem que dar conta das condições de sua pseudoliberdade, que inclui cumprir os quesitos de boa mãe, esposa, linda, competente, jovem, saudável, cheirosa, sexualmente resolvida, entre outros. Nesse contexto, fingir o orgasmo é contemporâneo, já que antigamente pouco importava o que a mulher sentia durante o sexo. E virou mais uma obrigação social: não basta ser feliz – tem que ter orgasmos múltiplos frequentemente e, mais importante, contar que tem (mesmo que seja mentira). Já os homens continuam com a mania de inflacionar o número de mulheres que andaram pegando, segundo a psicanalista e colunista da Tpm Diana Corso. “O gozo hoje tem valor tão importante quanto uma roupa de marca ou um carro de luxo”, observa ela. E chama a atenção para o culto à privacidade pública, o que inclui as ferramentas da internet: “Construiu-se um falso privado. Mas no verdadeiro privado somos todos menos felizes do que parecemos”.

A verdade é que as mentiras começam muito antes de abrirmos a boca ou publicarmos no blog – e são bem mais cabulosas do que nossa capacidade de florear poderia prever. Diana Corso vai longe para destrinchar a questão: “Não mentir seria assumir que eu gostaria de ser mais bonita que minha filha, que queria que meu chefe morresse, que torço para minha amiga não triunfar, que espero que o mundo acabe para ninguém saber que eu fracassei no amor outra vez”. Danuzza confessa que se autoengana todo dia. Não só por fingir que acha OK se relacionar com o cara que tem namorada, mas também quando o despertador toca, bem cedinho, e ela resolve dormir mais um pouco em vez de ir à academia. Desculpa-se dizendo a si mesma que amanhã vai andar uma hora a mais na esteira. Também essa promessa ela sabe que não será cumprida. Mas o que leva as pessoas a aceitar as próprias invenções?

“A raiz da mentira tem aspectos de uma imaturidade afetiva, de insegurança. O indivíduo não consegue ser feliz e cria mentiras para ter a sensação de que está vivendo em uma situação ideal”, escancara o psiquiatra Claudionor Picarelli, ex-professor da Universidade de Medicina de São Francisco, em Bragança Paulista. Ele alerta para o momento em que a mentira deixa de ser um hábito socialmente aceito e vira doença, em geral quando a pessoa tem altos níveis de ansiedade ou depressão e, por isso, pode desenvolver comportamentos como ficar reclusa, violenta – ou passar a mentir mais e mais e mais. Os casos pesados seriam os psicopatas, que têm desvios de caráter e mentem com a clara intenção de prejudicar alguém.

Viver sem mentir
Em medidas consideradas “normais”, a mentira é uma das maiores sustentadoras da relação social tal qual a conhecemos. Mas daria para viver uma vida 100% sincera? “É possível a partir do momento que a pessoa percebe que viver a verdade é muito mais fácil. Manter uma mentira é exaustivo, você tem que se esforçar, que criar novas mentiras”, analisa o psiquiatra Claudionor. Já a psicóloga Mônica Portella acredita que, sem mentir, “a vida seria insuportável! Ela é um mal necessário. Imagina se você perguntar para alguém por que ela não vai sair com você e ela te responder: ‘Porque você é chato’? Ou então um homem chegando em casa tarde da noite, e a mulher pergunta ‘por quê’, ao que ele responde: ‘Porque você é ruim de cama e eu estava com outra’. As relações ficariam insustentáveis”. É verdade. Mas. para que mesmo queremos relações como essas?

* Mentimos os nomes de nossos entrevistados para protegê-los

Me engana que eu gosto

Por Rodrigo Nogueira

Se você ligar agora para (21) 8887-7327 e disser quantas mentiras você contou ontem ganha um ano de assinatura da Tpm. Se você ligar agora para (21) 8887-7327 e disser quantas mentiras você contou no último mês, além da assinatura, você leva um carro importado e um pentinho de plástico. Mas tem uma condição: você tem que dizer a verdade. Não vale chutar. E aí? Já está com o celular na mão?

Você é uma mulher. Você não é careca. Você está lendo uma revista com a Bárbara Paz na capa. A chance de as últimas três frases corresponderem à realidade é grande. Mas a chance de o telefone no topo da página estar tocando agora com uma resposta verdadeira do outro lado da linha. hummmm. essa é bem menor. Por quê? Bom, em primeiro lugar, porque alguém que sai por aí catalogando as mentiras que conta ou tem algum transtorno obsessivo compulsivo muito inovador ou está precisando arrumar urgentemente uma ocupação. Mas a grande verdade (ops!) é que discernir o que é mentira do que não é pode ser tão complicado quanto encontrar o tal pentinho dentro de uma típica bolsa de mulher. Quer ver?

Não fazer sexo no primeiro encontro com o carinha que você conheceu na balada faz ele te respeitar mais. Verdade ou mentira? Ovo faz mal à saúde. Verdade ou mentira? Mesmo quando a mentira é clara (tipo na frase “o autor desta coluna é lindo”) muitas vezes ela é involuntária. Ou necessária.

Só uns numerozinhos
Arredondar os ponteiros quando alguém pergunta “que horas são” é uma prática economizadora de saliva muito comum entre os mortais. Adiantar em alguns quilômetros seu trajeto quando alguém pergunta ao celular “onde você está?” (e você está. atrasada) também é praxe. E a felicidade de quem recebe um par de brincos de strass no Natal? É tão mentirosa quanto o “que lindo!” que se diz praquela tia de 72 anos que te deu o diabo da bijou.

Quando o cerco se fecha ao universo feminino, a mentira ganha várias formas. Mas a mais comum delas talvez seja a de número. As mulheres têm uma forte queda por deturpar alguns números. O número que a balança marca na hora de se pesar, o número de parceiros sexuais que ela teve no último semestre (esse é campeão), o número de outonos que ela conta desde o nascimento.

Mas a verdade (de novo!) é que entre mentiras e mentiras salvam-se todos: mulheres, homens, tias velhas e carinhas de balada. O negócio é mentir com gosto. Nem que seja pra não frustrar uma pobre senhora ou afugentar um belo rapaz. Quer saber? Nem que seja só pra mentir. Experimenta. Conta uma mentirinha que não faz diferença. Num mundo de aparência que a gente cansa de ver, uma mentira bem contada vale mais do que duas meias verdades. Então, feche a revista e dê sua mentidinha. (Se não tiver ninguém por perto, liga pro tal telefone. Vou adorar ouvir a sua lorota.)

Rodrigo Nogueira, 29, é jornalista, autor e ator de teatro e novelas. Viaja com sua peça, Play, em que verdades e mentiras se misturam. Seu e-mail: rodrigorodrigorodrigo@gmail.com

Vidas editadas

Por Denise Gallo

Nunca compare seu interior com o exterior dos outros. A frase, muito usada por um amigo meu, é conselho essencial para a sobrevivência em tempos de biografias lapidadas. Repita-a mentalmente quando encontrar aquele casal que adora relatar viagens românticas inesquecíveis, quando conversar com a ex-colega de faculdade que está a mil na carreira, quando estiver diante das fotos daquela família linda, que não é a sua, e parece tão perfeita. Agora, se você gosta de ler entrevistas com mulheres famosas em revistas femininas, faça um favor a si mesma e tatue a frase na mão para jamais perdê-la de vista. Assim, chamadas de capa do tipo “hoje sou uma mulher que tem tudo” terão o destino que merecem: sua indiferença.

Estariam todos mentindo? Provavelmente não. Apenas elaborando narrativas atraentes. Realidade com toques de ficção. Ou ficção com toques de realidade. Esses limites andam mesmo muito tênues. Mentiras sinceras, como diria Cazuza. As vidas narradas podem soar tão bem. Com discursos apoiados em experientes consultores de imagem, então, são verdadeiros bálsamos para reforçar nosso imaginário de sucesso. Quando o que conta é a visibilidade, passar em branco é o pior dos pesadelos. Mas, com uma boa estratégia de branding, todo mundo pode lançar um novo “eu”, posicioná-lo no mercado das identidades bem-sucedidas e melhorar sua performance.

Invente-se, depois reinvente-se

Lembro de uma matéria publicada, há algum tempo, na maior revista do país, sobre a importância de esculpir uma marca pessoal convincente, da mesma forma que as empresas fazem com os seus produtos, com a ajuda de profissionais especializados. O renomado especialista em autopromoção dava o tom: “Você precisa ser a sua melhor criação”. A melhor coisa era o teste de 32 questões para avaliar “o que você oferece, para quem e o que tem de diferente”, se “sua aparência reflete quem você é e está adequada ao seu mercado”, se “você sabe dizer sem pestanejar quais são suas grandes paixões na vida” e se “você sabe qual é o próximo passo para a evolução da sua marca”. Para aqueles que não atingissem desempenho satisfatório, o implacável veredicto: “Você é invisível”.

Munidos de subjetividades bem planejadas, expressas em “lifestyles” coerentes e atualizados, sem nunca perder o bonde das tendências, os indivíduos/marcas ocupam seu lugar no mundo/mercado. Fazendo aquele esforço diário para acreditar no personagem. Mas o bom é perceber que nem sempre a vida aceita planos bem bolados só porque são bem bolados. E, quando as coisas dão errado e a marca sai de linha, vem a incrível oportunidade de olhar para o vazio e perceber na fragilidade a maior das inspirações. Para pensar sobre isso, sugiro o filme Enquanto o Sol não Vem, de Agnès Jaoui. Uma linda homenagem àquilo que não queremos mostrar sobre nós mesmos.

Denise Gallo, 38, é sócia da Uma a Uma, empresa de inteligência de mercado especializada em comportamento feminino: blog.umaauma.com.br. Seu e-mail: denise@umaauma.com.br

 

 

24 horas sem mentir
Desafiamos a atriz Maria Ribeiro a passar 24 horas sem contar nenhuma mentirinha. Ela topou – e comprovou que as mentiras femininas têm vários nomes e nobres intenções

Por Maria Ribeiro

Quando eu tinha 5 anos, meu cachorro morreu atropelado. Quando cheguei da escola e não o vi, me foi dito que ele tinha viajado pro Sul pra um tratamento de pele. Como seu pelo sofria com o calor, acreditei. Só que com o tempo quis visitá-lo. Meu pai, então, decidiu mandá-lo para a Alemanha. Senti saudades, mas logo ganhei outro cão. Soube da verdade dez anos depois, numa sessão de terapia de família, quando minha mãe, distraída, soltou o segredo. Então, com 15, perdi a confiança nos meus pais. Porque a mentira sempre fez parte da minha educação e, ainda hoje, é quase natural pra mim. Minto que não posso almoçar com uma amiga porque estou gripada, minto que estou chegando quando ainda estou em casa, minto sem perceber quando não é nem sequer “preciso”. Até que fui mãe e quis fazer diferente.

Portanto, achei que seria fácil escrever sobre um dia em que eu não mentiria, afinal lá se vão seis anos de treinamento. Mas, já esquecida da proposta, disse a uma jornalista que não sabia o sexo do bebê que espero. Me penalizei, mas logo achei que não tinha exatamente mentido, já que acredito ter direito a alguma privacidade.

Eu sei mentir. Aprendi vendo meu pai se gabar da sofisticação das suas mentiras. Eu também me achava esperta. E, me tomando como modelo, desconfiava de quase tudo. Alguém disse que a diferença entre os malandros e os bobos é que os bobos dormem bem. Pois bem, eu quero ser “boba”. Acreditar nos outros, ter confiança no meu marido, não duvidar do que me dizem. Se eu estiver sendo enganada, otário é quem me enganou.

Por exemplo: é difícil encontrar uma mulher que nunca tenha mentido que gozou. Os homens – não por opção – estão milhas a nossa frente. Porque toda vez que mentimos pro nosso parceiro, mesmo que por amor, nos afastamos um pouco dele. A verdade é sedutora e contamina todos os aspectos da nossa vida. Desde que decidi torná-la um norte na minha, fui pra um lugar mais profundo no meu trabalho, de entrega e transcendência.

Mas, voltando à tarefa das 24 horas sem mentir, fui reprovada. Tudo ia bem, até que fui ver uma peça de teatro de uns amigos e não fui capaz de dizer que não gostei. Eles estavam ali, suados, interessados na nossa opinião, e menti. A mentira tem seus valores, e não magoar os amigos é um deles.

Não dá pra fingir
Trabalhando na preparação para o filme Tropa de Elite, com a Fátima Toledo no comando dos ensaios, Wagner Moura e eu passamos por exercícios que buscavam nos trazer para o presente e para a verdade. Um dos exercícios exigia que disséssemos o que pensávamos um do outro. Foi horrível, mas dissemos. A partir daquela experiência nosso trabalho ganhou caráter. Porque não dá pra fingir. Nem atuando nem na vida. Mas ainda falta muito pra eu ser uma puta atriz.

P.S. Ano passado, a gata do meu filho morreu. Contei pra ele como se consolasse a mim mesma. Choramos, rezamos e vi meu filho tomar conhecimento da morte. Ao contrário dos meus pais, acredito que nada proteja tanto quanto a verdade. De preferência de mãos dadas com a mamãe.

Maria Ribeiro, 33, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de Elite, em 2007, e atualmente interpreta uma policial na novela Poder Paralelo, da Record. Seu e-mail: ribeirom@globo.com

Tpm+

Leia o monólogo O mentiroso do escritor francês Jean Cocteau.

O Mentiroso

Gostaria de dizer a verdade. Gosto da verdade. Mas ela não gosta de mim. A verdade é esta: a verdade não gosta de mim. Mal acabo de dizê-la, ela muda de rosto e volta-se contra mim. Tenho o ar de mentir e todos me olham de revés. E, no entanto, sou uma pessoa simples e não gosto da mentira. Juro. A mentira traz sempre complicações assustadoras. Prendem-se-nos os pés, tropeçamos, caímos e toda a gente se ri. Quando me perguntam alguma coisa, quero responder o que penso. Quero responder a verdade. Ardo no desejo de dizer a verdade. Mas não sei o que se passa. Sou tomado de angústia, de receio, de medo do ridículo, e minto. Minto. Não há nada a fazer. Demasiado tarde para voltar atrás. Depois de se começar a mentir, tem de se continuar. E não é cômodo, juro. É tão fácil dizer a verdade. É um luxo de preguiçoso. Tem-se a certeza de que não há, depois, enganos e aborrecimentos. Os aborrecimentos são só no momento, depois tudo se arranja. Enquanto que eu! O diabo intromete-se. A mentira não é uma vertente a pique. São montanhas russas que nos transportam, nos deixam sem fôlego, nos fazem parar o coração, nos põem um nó na garganta.

Se eu amo, digo que não amo e se não amo digo que amo. Adivinha-se a continuação. Mais vale disparar um tiro de revólver sobre si próprio e acabar com tudo. Não! É inútil eu tentar convencer-me, pôr-me diante do espelho e repetir: não mentirás; não mentirás; não mentirás. Eu minto. Minto. Minto. Minto por pequenas coisas e por coisas grandes. E se me acontece dizer a verdade, uma vez por acaso. Surpreendida, ela volta-se do avesso, enruga-se, encarquilha-se, faz troça, torna-se mentira. Os mais pequenos pormenores viram-se contra mim e provam que eu menti. E. não é que eu seja cobarde. Sei sempre o que deveria responder e imagino o que seria preciso fazer. No momento, porém, fico paralisado e não consigo falar. Chamam-me mentiroso e não respondo. Poderia responder: vocês mentem. Mas não encontro a força necessária para isso. Deixo-me insultar e rebento de raiva. E é esta raiva que se acumula, que se amontoa em mim, que me enche de ódio.

Eu não sou mau. Sou até mesmo bom. Mas basta que me chamem mentiroso para que o ódio me sufoque. Embora admita que têm razão. Eu sei que têm razão, que mereço o insulto. Mas é assim: eu não queria mentir e não suporto que não compreendam que minto contra a minha vontade, que é o diabo que me instiga. Hei-de mudar, é claro. Penso que já mudei. Não voltarei a mentir. Encontrarei um sistema para não mentir, para não continuar a viver na assustadora desordem da mentira. Dir-se-ia um quarto desarrumado, uma rede de arame farpado à noite, corredores e corredores do sonho. Hei-de curar-me. Hei-de libertar-me. E, de resto, posso dar já uma prova. Aqui mesmo, em público, acuso-me dos meus crimes e exponho o meu vício. Não, não. Tenho vergonha. Detesto as minhas mentiras e iria até ao fim do mundo para não ser obrigado a fazer esta confissão. E vocês, vocês dizem a verdade? Serão dignos de me ouvir? Realmente, acuso-me e nem sequer verifiquei se o tribunal estava em posição de me julgar, de me condenar, de me absolver.

Vocês mentem com certeza! Vocês mentem todos. Mentem constantemente e gostam de mentir e de acreditar que não mentem. Vocês mentem a si próprios. Isso é que é grave. Porque eu não minto a mim próprio. Eu tenho a fraqueza de confessar que minto, que sou um mentiroso. Mas vocês, vocês são uns cobardes. Escutam-me e pensam: coitado! E aproveitam-se da minha fraqueza para dissimular as vossas mentiras. Apanhei-os! Sabem, minhas senhoras e meus senhores, por que é que lhes disse que mentia, que gostava da mentira? Não era verdade. Era somente para os atrair a uma armadilha e para chegar a uma conclusão, para compreender. Eu não minto. Eu nunca minto. Detesto a mentira e a mentira detesta-me. Menti apenas quando lhes disse que mentia.

Vejo agora os vossos rostos que se desfiguram. Cada um gostaria de fugir do seu lugar e receia ser interpelado por mim.

A senhora disse ao seu marido que tinha ido ontem à modista. O senhor disse à sua mulher que jantava com uns amigos. É falso. Falso. Falso. Ousem desmentir-se. Ousem chamar-me mentiroso. Ninguém diz nada? Perfeito. Eu sabia com o que contava. É fácil acusar os outros. Fácil deixá-los mal colocados. Vocês dizem-me que minto e, afinal, são vocês que mentem. É admirável. Eu nunca minto. Ouvem? Nunca. E se me acontece mentir, é para prestar um serviço. para evitar fazer sofrer. para evitar um drama. Mentiras piedosas. É claro que é forçoso mentir. Mentir um pouco. de tempos a tempos. O quê? Que diz? Ah! Julgava. não. porque. acharia estranho que me censurassem este gênero de mentira. Seria engraçado, vindo de vocês. De vocês, que mentem, a mim, que nunca minto.

Vejam, por exemplo, no outro dia – não, vocês não acreditariam. De resto, a mentira. a mentira. é uma coisa magnífica. Digam lá, imaginar um mundo irreal e fazer acreditar nele – mentir! É certo que a verdade tem o seu peso e consegue espantar-me. A verdade. As duas equivalem-se. Talvez a mentira lhe ganhe. embora eu nunca minta. O quê? Se já menti? Claro que sim. Menti quando lhes disse que mentia. Menti quando lhes disse que mentia ou quando lhes disse que não minto? Mentiroso, eu? No fundo, já não sei. Sinto-me confuso. Que tempo o nosso! Serei um mentiroso? Pergunto-lhes. Sou antes uma mentira. Uma mentira que diz sempre a verdade.

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