Marco Feliciano habita meu imaginário. Quantas versões podemos ter?
Marco Feliciano habita o meu imaginário tanto como o deputado cantor quanto como o pastor presidente racista. Quantas versões podemos ter?
Brasília é uma cidade experiente, convicta e cheia de autoconhecimento. Ela sabe quem ela é, para que veio, a importância e imponência que tem. Demonstra de maneira incontestável, seja na subjetividade de seus monumentos ou na soberania de seus homens, que conhece os males do mundo. Porém, também emana dela uma energia de imaturidade, de moça brotando mulher, de história ainda por escrever. São traços de inocência que estão no símbolo da Justiça, no que restou do bioma cerrado, no ar seco, no sotaque candango, na luminosidade intensa, na noite fria, na cor branca e naqueles que lá chegam imbuídos de ideais humanitários.
Nos meus dois primeiros anos de mandato como deputada federal, não havia sido tão conquistada por Brasília como neste terceiro ano – embora não seja uma frequentadora das atrações da cidade. Sempre chego decidida a fazer altos programas, mas o trabalho na Câmara é muito intenso, o plenário nunca tem hora pra acabar e me consome de tal forma que só quero ir embora para o hotel onde moro, jantar e dormir.
Mas o que vem sendo revelador nesse trabalho é o mergulho nas especiarias de caráter e personalidade dos deputados, ministros, garçons, assessores e muitos outros que compõem o cenário do Congresso. Os temas, sempre abrangentes, me desafiam, pois estão me fazendo perceber as várias versões do homem político, e as minhas também. Digo que o Congresso mudou de cara para mim neste ano. Sou o avanço e aprimoramento da pesquisa científica no Brasil, o combate ao crack, a educação na perspectiva da diversidade, a proteção dos animais, os incentivos fiscais para iniciativas de interesse social, o autismo, a dislexia, o TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade), o fortalecimento das organizações da sociedade civil, entre outras coisas.
Quem neste mundo é uma coisa só?
Nas primeiras amizades que fiz ao chegar ao Planalto, lá estava o pastor Marco Feliciano. Homem simpático e galante, que desviava seu caminho para conversar comigo. Minha informação sobre ele era zero. Eu ainda desconhecia seu partido, religião, estado civil, crença. Um dia veio me perguntar se havia gostado do CD que mandou pro meu gabinete. Naquele momento descobri que se tratava de um cantor.
Encontro inesperado
Nossa afinidade continuou em pequenos diálogos pelos corredores. De repente, numa tarde quente, uma multidão o cercava com faixas, gritos e muita ira chamando-o de racista, homofóbico e preconceituoso. Havia sido indicado à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Fui até o Plenário onde estava acontecendo sua eleição. A manifestação era tamanha que fui até a frente da sala acompanhada de seguranças. E lá no meio de muita gente estava o deputado cantor acuado, com expressão de erro. Entendi que ele havia feito declarações bem infelizes que não condiziam com o cargo que pretendia assumir.
Quando me viu, veio até mim e disse:
– Eu não sou isso que estão dizendo.
– Então se coloque, diga isso a eles.
– Eles não querem me ouvir.
Depois disso, ele me procurou para falar sobre o ocorrido e até chorou. Hoje, habitam no meu imaginário o deputado cantor e o pastor presidente racista. Também não quis que ele assumisse. Quantas versões podemos ter? Quanto mais multifacetado nosso alcance, melhor nossa perspectiva de relação interpessoal. Eu não quis matar o deputado cantor dentro de mim!
(*) Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br |