Violência obstétrica: até quando?

por Sabrina Geovana Carvalho

A pedagoga mineira Sabrina Carvalho teve o dia de seu parto marcado por comentários desrespeitosos e procedimentos médicos com os quais não concordou. Aqui, ela compartilha sua história

Escrevo este relato como forma de tentar lidar melhor com a experiência de parto que tive – foi um parto traumático e que não desejo para ninguém, não quero que isso aconteça com nenhuma outra mulher. Meu intuito é partilhar a minha vivência, pois me preparei muito para viver esse parto ao longo da gestação toda. Fiz uma extensa pesquisa e fiz a escolha da maternidade com a confiança de que seria respeitada. Hoje me sinto culpada da minha escolha – uma maternidade renomada de Belo Horizonte, recém inaugurada e que prega o discurso de uma assistência humanizada. Uma instituição que me garantiu que eu não seria vítima de violência obstétrica, mas foi exatamente o que eu vivi: uma assistência desrespeitosa e violenta em todos os níveis – físico e principalmente psicológico. Embora saiba que foi algo pontual e que existem excelentes profissionais e histórias de parto nessa instituição, esse não foi o meu caso e gostaria de dividir com vocês o que eu vivi.

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Minha família e todos os que assistiram ao parto (a doula e a fotógrafa da minha equipe) estão abalados com o ocorrido e, até hoje, eu não consigo acreditar que isso tudo de fato ocorreu.

No dia 28 de dezembro de 2019, me internei na maternidade em questão. Tudo estava evoluindo dentro do esperado e eu e meu bebê estávamos bem, sendo assistidos de maneira atenciosa e respeitosa. Entretanto, quando ocorreu a troca de plantão médico pela manhã, tudo mudou.

O médico que chegou no plantão às 7h entrou na suíte enquanto eu estava em quatro apoios na maca, já em puxos, e permaneceu algum tempo conversando alto sobre assuntos pessoais com as enfermeiras que estavam com ele e mexendo de forma barulhenta em vários instrumentos, um total desrespeito ao meu momento.
Após tentar conversar comigo durante as minhas contrações, ele se recusou a ler o meu plano de parto, alegando que “não era hora de fazer isso e sim de fazer o bebê nascer e que ele não era o inimigo ali”. No meu plano de parto, estava escrito que eu não queria que me oferecessem analgesia e a todo momento ele me oferecia analgesia e dizia como eu estava muito cansada (sem sequer ter me perguntado isso).

Chegou, inclusive, a tentar discutir com minha equipe em dois momentos (doula e fotógrafa). O clima de hostilidade me deixou bastante assustada e interferiu diretamente na minha capacidade de relaxar e me entregar ao processo.

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Em 1:30h que ele ficou no quarto, foram três toques vaginas e duas manobras de reduções de colo (eu nem sabia que isso existia) – sem me explicar nada e sem o meu consentimento. Nas duas vezes que realizou a redução (minha equipe me explicou mais tarde o que era) eu urrei de dor e implorei para que ele parasse. Ele me colocou em litotomia [posição ginecológica, deitada com as pernas elevadas por apoios] duas vezes, dizendo que a banqueta “não estava sendo boa para mim” e ficava dirigindo meus puxos – sem me dar espaço para que eu me conectasse com aquela experiência. Ainda que fosse visível meu desconforto e minha equipe tentasse interferir sutilmente para que eu tentasse novas posições, ele insistiu que aquela era a melhor posição para mim.

A presença dele era invasiva e perturbadora, dominava o ambiente de tal forma que meus acompanhantes e equipe não conseguiam se comunicar comigo. Ele interferia o tempo todo em todas as conversas, não parava de falar, contava casos pessoais e totalmente inadequados e eu estava extremamente incomodada com sua presença.

Quando eu pedi para descansar, ele respondeu rindo que era impossível descansar naquele momento e disse, em tom de zombaria para os demais que estavam na suíte: “Olha ela querendo descansar agora, no expulsivo. Não é hora de descansar, é hora de fazer ele nascer”. Eu implorei para que me deixasse descansar só um pouco. Dessa maneira, eu teria forças para continuar. E ele me negou. Disse algo sobre como era ruim ter um filho com paralisia cerebral, que ele via muito no consultório e, a essa altura, meu marido começou a acreditar que havia realmente algo acontecendo com nosso filho, ainda que os batimentos indicassem a todo tempo que estava tudo correndo bem.

Ele alegou que eu estava completando muito tempo de período expulsivo e que era protocolo da maternidade fazer algo e que indicaria a intervenção única e exclusivamente por minha causa, porque eu não estava dando conta e estava em exaustão. Ele determinou isso para mim, depois de repetir inúmeras vezes o quanto eu estava cansada, a ponto de eu realmente acreditar que não daria conta. A intervenção era o fórceps e, nesse momento, eu me desesperei, cogitando inclusive uma cesariana e ele respondeu simplesmente que não existia essa possibilidade para mim. Naquele momento, me sentia tão desamparada por aquele médico, porque nada foi explicado com calma, tudo foi feito com muita agressividade... E esse meu questionamento! Não a intervenção em si, mas como tudo foi conduzido. Eu desejava, sim, um parto mais natural possível, mas estava preparada pra possibilidade de intervenções caso necessárias. Ele dizia que estava fazendo aquilo para salvar meu filho, que ia fazer o que fosse necessário para que ele nascesse, chegando a falar, inclusive, que depois eu poderia processá-lo. Declarou que o parto não era mais meu, que, a partir da hora que as intervenções começaram, o parto era meu, dele, do anestesista, de todos envolvidos.

Ele mencionou alguma coisa sobre episiotomia (procedimento cirúrgico que consiste em uma incisão no períneo, região entre o ânus e a vagina, para facilitar a passagem do bebê), mais uma vez sem se dar ao trabalho de conversar e me explicar o que ia acontecer. Estava escrito no meu plano de parto que eu não desejava episiotomia em hipótese alguma e nesse momento questionei a necessidade desse procedimento. O anestesista, que também estava na sala, respondeu com tom de ironia que havia todas as evidências científicas para uso da episiotomia. O médico afirmou que sabia o que estava fazendo, que não machucaria meu filho e que aquilo era o melhor. Eu estava aterrorizada com a possibilidade de algo ocorrer com meu filho. 

Ele deu anestesia local e iniciou o corte, eu gritei de dor. Senti ele cortando, o sangue escorrendo e disse a ele que estava sentindo. Ele pediu mais uma dose de anestesia local e eu continuei sentindo tudo e reportei isso a ele, que afirmou que não era possível que eu estivesse sentindo dor. O anestesista confirmou que eu não poderia estar sentindo dor como estava relatando. Tudo foi feito de forma atropelada, sem nenhuma justificativa, porque os batimentos do meu bebê continuaram bem em todo o tempo, como descrito no prontuário médico.

Eu me perguntava a todo instante porque aquilo estava acontecendo comigo e tinha vontade de sair correndo dali.

Quando meu bebê nasceu, as minhas primeiras palavras para ele foram de pedir perdão por tudo aquilo que havia acontecido ali, um nascimento tão desnecessariamente violento, tão fora de tudo o que havia desejado e me preparado. E ele não respeitou sequer minha fala com meu filho e disse que não havia porque pedir perdão, que tinha feito aquilo pelo bem dele e que “parto era fazer neném nascer”. Mais tarde, ele retornou à sala e reafirmou que tudo aquilo tinha salvado meu bebê, o anestesista também retornou ao meu quarto e, em total desconsideração ao que eu havia acabado de viver, disse mais uma vez que não era possível que eu estivesse sentindo dor durante a episiotomia. E acrescentou também que essa coisa de parto natural era modinha e pra eu tomar cuidado pra não ser dessas mães que não vacinavam meu filho.

A cabeça do meu bebê ficou muito inchada e a pediatra fez o diagnóstico: era um cefalohematoma em decorrência do uso do fórceps. Foi necessário submetê-lo à radiação para fazer a radiografia e investigar a possibilidade de fratura e já passamos por três pediatras e um neurologista – mais estresse desnecessário para a nossa família no pós-parto. Todas as vezes que olho para seu hematoma sofro profundamente e penso que tudo aquilo poderia ter sido evitado.

Me senti fora de mim durante o resto do dia e confesso que ainda não consegui processar tudo o que me aconteceu. Carrego comigo a certeza de que, se tudo tivesse sido feito com calma e respeito, o desfecho teria sido diferente. Jamais conseguiria me entregar e parir naquele ambiente caótico que ele criou na minha suíte de parto em tão pouco tempo.

O médico que trabalha nessa instituição agiu em total desrespeito por mim e pela importância que aquela experiência tinha para minha família. Sofremos violência obstétrica e um terrorismo psicológico injustificável. Todos que assistiram a essas agressões estão abalados. Escrever tudo isso é muito difícil para mim e ter que reviver diariamente o que aconteceu é algo realmente muito doloroso e certamente é um trauma que terei que lidar pelo resto da minha vida.

Créditos

Imagem principal: Carol Maia Ligeiro / @maiafotografiadeparto / Divulgação

Fotos de Maia Ligeiro / @maiafotografiadeparto / Divulgação

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