Profissão: mãe

por Flora Paul

Depois de fugir da Justiça para criar seus 50 filhos, a história de Flordelis virou filme

Flordelis dos Santos de Souza teve seu primeiro filho aos 18 anos. Hoje, com 48, faz o que toda mãe faz com os filhos: passeia, vai à praia, leva ao cinema e, às vezes, até emenda uma ida ao Maracanã, para ver o Flamengo jogar, com as crianças. Não fosse por um detalhe. Flordelis tem 50 filhos.  São quatro biológicos e 46 adotados, sendo que 37 deles chegaram a sua casa de uma vez só.

Nascida no Morro do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, penúltima de cinco filhos, Flor cresceu em uma família humilde e regrada, mas sempre conheceu a realidade de crianças e adolescentes que escolhiam o tráfico de drogas para sobreviver. Inconformada, passou a procurar respostas, tentar ajudar esses jovens.

Na jornada de 30 anos, ganhou o respeito da comunidade, foi perseguida pela Justiça – “Eles não viam meus filhos como meus filhos, mas como números” –  e criou sua família com a ajuda de pessoas como o sociólogo Betinho, da Organização das Nações Unidas (ONU) e de seu marido, Anderson. Mas nunca espera por nada além do amor de seus filhos. Agora sua história estreia nos cinemas em Flordelis – Basta Uma Palavra para Mudar, dirigido por Marco Antônio Ferraz e Anderson Corrêa, com a participação de atores conhecidos como Reynaldo Gianecchini, Fernanda Lima, Letícia Sabatella e Cauã Reymond contando a vida de seus filhos antes de serem adotados.

Flordelis passou a ser conhecida em 2003, quando foi considerada “Mãe do Brasil” em um programa da Xuxa. Interessados pela história, muitos atores foram visitar sua casa e ver tudo de perto. “Conheci todos os atores que se envolveram no filme, mas de alguns eu já era amiga antes, como da Ana Furtado, da Isabel Fillardis, do Sérgio Marone. A Elba Ramalho não está no filme, mas me ajudou muito”, contou ao site da Tpm por telefone.

“Desde o nosso primeiro encontro reconheci nesta mulher o dom do amor, da esperança e da generosidade. Se pudesse resumir o que é a Flor em uma única palavra, seria coração”, escreveu por e-mail a atriz Ana Furtado ao site da Tpm. “A Flor é a mãe coragem”, resumiu o ator Sérgio Marone, que resolveu integrar o elenco porque “sabia que ia encontrar o set de um filme em que todo mundo está trabalhando com prazer, pelos mesmos motivos, ideais e paixões.”

Batemos um papo com Flordelis, que contou como foi que se tornou mãe de tantas crianças, como enfrentou o tráfico de drogas e a Justiça e se dá tempo de manter um casamento com 50 filhos.

Como foi sua infância?
Tive uma vida normal, como toda criança. Brincava pouco fora de casa, porque meus pais me criaram na favela, uma dureza. Não me deixavam solta.

Era uma vida assim: da escola para a casa?
É. E minha mãe sempre ficava em casa também, para evitar que alguma coisa acontecesse com os filhos, sempre teve esse cuidado.

E seu pai, fazia o quê?
Meu pai era pintor. Não era um pintor de paredes, como é que eu falo? Fazia desenhos, em parede, em igreja, pintava teto de igrejas desenhando anjos, flores. Minha mãe era aposentada por invalidez, teve muitas complicações durante o parto, fez quatro cesáreas, teve vários problemas sérios de saúde e não pôde mais trabalhar.

Quem escolheu seu nome?
Meu pai. Ele queria botar um nome bíblico, diferente de todos os outros nomes que já conhecia. Aí achou na Bíblia uma flor que ornamentava o templo de Salomão. O rei havia mandado buscar essas flores, e o nome delas era Flor de Lis. E ele colocou.

Vocês eram de uma classe social baixa?
Dava para comer, era uma família de favela, mas, com o que meu pai ganhava, dava para sustentar a gente numa boa.

Como foi que decidiu ser professora? Você era boa aluna?
Eu era boa aluna, sempre me destaquei em casa por isso.

Foi por isso que decidiu se tornar professora?
Acredito que sim. Tinha 19 anos. Fiz magistério. Mas exerci bem pouco a profissão, não foram nem seis meses.

Durante esse tempo você começou a passar noites no morro procurando crianças, tentando entender por que elas se envolviam com as drogas e com o crime. Como acontecia essa aproximação?
Fui criada na favela, então conhecia a família dos meninos que iam para o tráfico, fui criada entre isso. Eu tentava fazer alguma coisa por eles, porque eu não me conformava com a omissão de algumas mães, que empregavam os filhos nas drogas ou simplesmente cruzavam os braços, achando que não podiam fazer mais nada. Eu não me conformava. Sempre achei que tinha algo para fazer.

Quando você saía à noite não sentia medo?
Não. O que me fez sair de madrugada era para chamar a atenção desses adolescentes, tentar mostrar que eles tinham outro caminhos para poder realizar seus sonhos. Porque os meninos, quando entram para as drogas, entram tentando uma vida melhor, para realizar sonhos que não são tão grandes assim. Comecei a andar durante a madrugada para tentar entender por que eles optavam por esse caminho, o que levava eles a isso.

Como era a reação? Tinha criança que nem queria falar com você?
Tinha sim. Quanto mais alguns deles procuravam não me dar atenção, mais eu insistia. Sempre fui muito persistente mesmo, principalmente com esses. Eu me entregava mais, ia atrás, insistia, nunca fui de recuar.

E o que você falava para eles?
Eu chegava tentando entender. Eu falava: "Por que você está nisso? Você quer ajuda? Não quer tentar partir para uma outra saída? Eu quero te ajudar e sei que posso e tenho como te ajudar". Eles acabavam me ouvindo. Também tinham aqueles que não encontravam alguém para ajudá-los. Aí cinco desses adolescentes resolveram ir morar comigo. Mas eu só vi que deu certo, e me deu forças para continuar, quando vi que eu já estava conhecida na favela pelo trabalho que fazia. Um menino foi tirado do paredão da morte. Consegui chegar até lá antes de ele ser fuzilado, pedi que o soltassem. E ele foi solto.

Como era essa relação, como você lidava com o tráfico? Você se tornou uma pessoa influente e o tráfico aceitou?
No início não, tanto que fui, várias vezes, ameaçada de morte, tive meu nome na relação de assassinatos da favela. Mas, graças a Deus, não aconteceu. Consegui conquistar o respeito dos meninos do morro, acho que pelo fato de não aceitar nada deles, dinheiro, nada. Perceberam que eu queria realmente ajudar. Quando algum era preso, ia atrás, na delegacia, conversar com eles. Quando tinha tiroteio na favela, todas as pessoas corriam para dentro das casas. Eu não, ia para a rua tentar ajudar, evitar que o pior acontecesse. Então eles começaram a ver que eu arriscava minha vida por eles, eu fazia o que a mãe não fazia.

Você não tinha medo da morte?
Não. Nunca tive. Acho que isso ajudou muito. Não tenho até hoje. Fui criada pelos meus pais no segmento religioso do Evangelho e tenho certeza de que isso influenciou muito minha vida, sempre tive muita fé. Nunca tive medo de enfrentar nenhum tipo de situação difícil.

Como foi a adoção dos outros filhos? Você já tinha três filhos biológicos e cinco adotados em casa.
Os outros filhos chegaram depois da chacina da Central do Brasil [após um grupo de extermínio tentar assassinar crianças de rua que dormiam em frente à igreja da Candelária em 1993, alguns sobreviventes passaram a dormir na Estação Central do Brasil, onde, em 1994, ocorreu um novo ataque]. As crianças vieram por saber do trabalho que eu já fazia pela favela. E eu fui tentar achar uma menina que tinha fugido de casa, envolvida com drogas e fui parar na Central do Brasil, um dos pontos de referência de crianças que fugiam da comunidade.

E como essas crianças chegaram até você?
Essas trinta e sete vieram de uma vez só, oriundos da Central do Brasil. A mãe de uma menina que eu tinha levado para minha casa, um bebê abandonado aos 15 dias de vida, sabia o meu endereço, pegou todo mundo e levou todos de uma vez para minha casa. Quando eles vieram, decidi ficar com eles. Porque crianças de rua são desamparadas de tudo e de todos. Vi que, se eu virasse as costas para elas, fecharia a porta para a única pessoa que eles procuraram na hora do perigo.

Na prática, como que você conseguia alimentar, vestir e educar todas essas crianças?
Consegui alimentar através do Betinho, o Hebert de Souza. Ele tinha fundado a Ação e Cidadania, que faz a campanha do Natal sem Fome até hoje. O Betinho estava na mídia constantemente, então pedi ajuda a ele. De fato, ele me atendeu, mandou alimentos para casa. Também havia uma mulher na época, chamada Marlene Louro, que veio visitar a casa, era uma representante da ONU e ajudou com roupas, entende.  E a própria associação da comunidade em que eu morava, em Jacarezinho, ajudava. Então as coisas ficaram difíceis quando eu tive que fugir.

Você fugiu porque não tinha a guarda das crianças e foi procurada pela Justiça.
É. Eu não tinha a legalidade para estar com essas crianças, nem sabia o procedimento. Eu era da favela, não tinha conhecimento nenhum disso, sobre Estatuto da Criança, nada disso. Simplesmente fiquei com as crianças. Mas quando o Juizado soube, tentou fazer o papel dele. Quase um ano depois, tentaram pegar as crianças e eu não quis entregar. Veio uma ordem de busca e apreensão das crianças, com uma ameaça de prisão contra mim por desacato à autoridade. Só que eu decidi não entregar as crianças e fugi com elas. Fiquei quatro meses e meio em um apartamento que me foi cedido, emprestado, escondida com as crianças. Depois o Juizado me achou, eu fugi de novo, passei uma noite na rua e fui acolhida pela comunidade de Parada de Lucas,  me receberam, me acolheram, deram uma casa para que eu pudesse morar e fiquei lá mais quatro meses.

E como foi se esconder?
Difícil. Eu estava sendo procurada como sequestradora de crianças, mas eu não estava fazendo nada. Não estava cometendo crime algum. Estava sendo mãe. São meus filhos. Eles podem não ser meus filhos gerados no ventre, biológicos, mas são meus filhos que eu gerei no meu coração. Indiscutível. Eu sou a mãe deles.

Então você teve mais problemas com a polícia do que com o tráfico.
Muito mais. Porque os meus filhos eram vistos como números, estatística. Eles não viam meus filhos como meus filhos. Eles achavam que eu era uma louca que chamava aquelas crianças de filhos, não conseguiam entender. Mas na minha cabeça isso já era uma coisa resolvida, eram meus filhos, crianças que me foram dadas por Deus, que as mães biológicas não quiseram ficar, e Ele achou que eu era capaz e me deu cada uma delas para que eu pudesse cuidar.

Como que se resolveu essa história?
Depois de oito meses e meio de perseguição, trocou de juiz, entrou o Ciro Darlan. Ele pelo menos me escutou, me recebeu.  Foi me ensinando o que fazer. Tanto que na época eu me tornei uma associação, um abrigo provisório, que era a Associação Lar-Família Flordelis. Fui abrigo por quase três anos, mas depois, como eu não poderia continuar com os meus filhos, decidi abrir mão de ser abrigo e me tornei pessoa física para adotar os meus filhos.

E agora você já conseguiu adotar todos?
Em 2006 começou a trajetória toda do processo de adoção. Já consegui seis adoções, o restante ainda está em processo, mas eu tenho a guarda de todos. O processo é uma coisa demorada porque também não é fácil para a Justiça do Menor. Eu sou a exceção, uma mãe de muitos filhos.

Você engravidou, teve quatro filhos biológicos. Acha que dar à luz faz uma mulher virar mãe?
Não. O fato de você guardar um filho nove meses na barriga, gerar, não quer dizer nada. Há muitas mulheres que passam por esse processo e não são mães. São máquinas de fazer filho. O que faz a diferença é o cuidado, o dia a dia, o sorriso, o choro, quando a criança te chama de mãe pela primeira vez. Tudo isso faz a diferença. Ser mãe não é só carregar no útero, é um conjunto de coisas.

Você gostaria de adotar mais crianças?
Não. Na verdade não. Tanto que depois que me tornei pessoa física, montei o INFAM, Instituto Flordelis de Apoio ao Menor e dou atendimento a crianças que vivem em áreas de risco, nas comunidades carentes. Dou suporte para outras crianças que precisam de mim. Mas adotar, penso que não. Também não digo que nunca mais vou adotar, afirmar isso, aí eu não sei.

Como é a relação do seu marido com seus filhos?
Meu marido me dá total apoio em tudo que eu faço em relação às crianças. Cada filho que eu recebo, ele recebe também, da mesma forma. O bom é que meu marido é um pai muito presente na vida dos filhos. Somos casados há 16 anos. Já tinha três filhos biológicos do primeiro casamento, e com o Anderson tive um. Mas ele é pai de todos, sem exceção.

Dá pra manter o casamento vivo com tantos filhos?
Dá! A gente sempre procura ajeitar a família de um jeito bem legal para poder ter tempo um para o outro. E, apesar de fazermos muitas coisas com nossos filhos, temos nosso tempo sim.

Como é seu dia a dia?
Às vezes as pessoas se impressionam e acham que é tudo muito diferente, pela quantidade de filhos, pela família grande, mas nós vivemos como uma família normal. Passeamos, vamos à praia. Outro dia mesmo levei uma turma boa ao Maracanã para assistir ao Flamengo. Eu saio muito com os meus filhos. O fato de ter muitos não impede que eu tenha uma vida normal com eles.

Sobra um tempo livre para fazer suas coisas?
É difícil. Mas eu faço, vou ao cabeleireiro, faço a unha. Não com tanta frequência, toda semana, mas de 15 em 15 dias faço minhas coisas. Quando não posso fazer fora, faço em casa mesmo. Tenho filhas que já são adolescentes e também fazem.

Você fez tudo isso, todo esse trabalho com as crianças sem nunca querer nada em troca?
Nunca pensei nisso, acho que por isso as pessoas pensaram na época que eu era muito louca. Abri mão de ajudas que eu tinha para conseguir adotá-los, mas hoje eu recebo muito mais dos meus filhos. O que ganho deles é incalculável.

Sua profissão é ser mãe.
Hoje, se você me perguntar o que é que eu sou de verdade, o que eu gostaria de ser até morrer, é ser mãe. Eu acho que nasci para isso. Deus me colocou no mundo para ser mãe de filhos que infelizmente algumas mães geraram e abandonaram.

E como é ser avó?
É uma experiência muito legal. Tenho seis netos. Alguns moram comigo, com os pais juntos, outros moram separado, mas a gente se dá muito bem. É diferente. Sendo mãe a gente cobra mais. Como avó a gente já bajula, estraga um pouquinho.

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