por Maria Ribeiro
Tpm #109

Maria Ribeiro fala sobre a harmoniosa relação que tem com quem trabalha em sua casa


Participar da vida de quem praticamente mora com você deixa o mundo mais leve
e equilibrado

 


Passei grande parte da minha infância na cozinha. De avental cor-de-rosa, ensaiei, ao lado de babás e empregadas, um futuro brilhante como dona de casa, projeto abandonado recentemente por uma ausência absoluta de talentos domésticos. Fazia brigadeiro, lavava a louça e, função predileta, fazia misturas exóticas para consumo próprio. Almocei e jantei na copa até completar 8 anos, idade em que fui promovida à sala. Mas, apesar de hoje condenar esse apartheid imposto por meus pais, eu invejava pouco meus irmãos mais velhos. O calor da casa estava com a minha turma: novelas do SBT, riso espontâneo, revista Amiga, intimidade.

Sou, como muitos brasileiros, marcada pela forte relação que tive com quem trabalhava na minha casa. Paulo, Lina e Joana são nomes que compõem a minha história tanto quanto as escolas em que estudei.

Paulão era nosso motorista. Me levava à escola todos os dias num imponente Landau azul-marinho. Íamos ouvindo o resultado da loteria esportiva, e eu fiquei ph.D. em samba e futebol, além, é claro, de ter decorado todos os bordões da zebrinha de voz irritante. Ficou em casa por 15 anos, dirigia carros incríveis e tinha ouro nos dentes e no pescoço. Foi um grande companheiro e o responsável por meu primeiro contato com a morte. Quando ficou doente, lembro-me do choque ao vê-lo num hospital público, largado à própria sorte num quarto com 30 moribundos.

Aquele negão luxuoso de 1,80 metro de altura era um homem pobre, e o que eu vi naquela emergência não devia ser muito diferente do que acontecia com os escravos.

A casa é nossa

Foi uma experiência triste e transformadora, porque hoje, 15 anos depois dessa visita, me esforço para que minhas funcionárias tenham plano de saúde, e costumo me convidar para conhecer suas casas, quando muitas vezes acabo ficando pra almoçar. Acho que participar da vida de quem praticamente mora com você deixa o mundo mais leve e equilibrado. Sem falar que devia fazer parte do currículo escolar conhecer as periferias das grandes cidades.

Há dois anos meu marido fez um filme no Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Como o personagem era um autêntico “mano” e ele não queria fazer uma caricatura, alugou uma casa e decidiu fincar os pés na comunidade até que ficasse invisível para quem vive lá. Depois de dois meses, me disse que o que mais chamou a sua atenção não foi a pobreza nem a violência, e sim o afeto, distribuído com fartura e sem distinção. Não por acaso, Bróder fala de amizade, artigo mais difícil de encontrar em classes abastadas do que na casa da sua empregada.

Sem preconceito. Conheço banqueiros bacanas e “socialistas” que não sabem o nome do porteiro do prédio em que moram e tenho visto mais humanidade nas padarias do que nos restaurantes finos.

Mas longe de mim fazer uma coluna política. Não sou gabaritada nem gosto do esporte, além de ser totalmente ignorante a respeito das estatísticas sociais do nosso país.

O que sei é que, na minha casa, a porta da cozinha fica aberta, e as histórias da Joana e da Maria se misturam com a minha e às das crianças. Pensando bem, o que eu espero e busco é que a minha vida seja uma cozinha dentro da sala.

Maria Ribeiro, 35 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de Elite, em 2007, e em Tropa de Elite 2, em 2010.
Seu e-mail: ribeirom@globo.com

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