Foram dois anos infernais, em que enfrentou uma doença, uma morte e a traição de um amigo. Passado o furacão, a maior estrela do rock brasileiro contemporâneo se diz novamente confortável consigo mesma
A primeira vez em que o músico baiano Duda Machado viu Priscila Leone, ela na época com 16 anos, socava o estômago de seu então namorado, um garoto soteropolitano de quem hoje nem sequer lembra o nome. "Ela já era aquela coisa confusa, rebelde e cheia de atitude", nos escreveu Duda. A amizade dos dois tem mais de duas décadas e inclui um namoro-casamento de oito anos que começou pouco depois do episódio dos socos no estômago. Priscila é uma mulher de relações longevas. E, assim, o ex não é apenas um cara presente, mas também uma das pessoas em quem ela mais confia. Confiança, aliás, é palavra de ordem. "Me apego mesmo e tenho uma tendência a construir relações sólidas. Estou na mesma gravadora desde sempre, meu empresário é o mesmo. Estou com meu marido [Daniel Weksler, baterista da banda NX Zero] há nove anos. Não desisto na primeira dificuldade", diz.
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Foi com Duda na bateria que ela lançou Admirável Chip Novo, o álbum de estreia como Pitty, em 2003. O apelido vinha da infância, abreviação de Pitica, e agora dava nome à banda. O disco foi um divisor de águas. Por causa dele, Pitty trocou a cena underground de Salvador pelo mainstream de São Paulo, onde assinou com a primeira gravadora. Chamar a capital paulista de lar não foi difícil. E, morando na região do Baixo Augusta, ela se tornou a mais célebre mulher do rock brasileiro contemporâneo – não sem antes passar pelos perrengues que o sucesso traz. Entre mortos e feridos são cinco álbuns de canções inéditas desde que deixou a Bahia. Nenhuma outra roqueira brasileira de sua geração se equipara a sua popularidade.
"Aos 16 anos, ela já era aquela coisa confusa, rebelde e cheia de atitude"
O ano da minha vida
Hoje, aos 37 anos, Pitty viaja o Brasil com a turnê de Setevidas, seu mais novo disco, lançado no começo do ano passado. Nos palcos, canta sua própria cura em letras autobiográficas. Todas as canções do álbum tratam dos anos que precederam sua produção. 2012 e 2013 foram anos de ruptura, de meses arrastados e acontecimentos encarrilhados, "um pior que o outro", como ela conta. Doença, morte, traição, teve de tudo. E do enfrentamento, veio a reinvenção. "Na Bahia, a gente diz: ‘O que não mata engorda’. É um clichê, mas uma verdade. O que não me destruiu, me fortaleceu. É por isso que esse trabalho é uma espécie de vômito. Eu precisava expurgar tudo o que me aconteceu."
"Banda é igual a casamento, chega uma hora que a gente escolhe se separar pra ver se gosta mesmo um do outro"
Foi com essa frase que a cantora iniciou uma conversa de 2 horas e meia, em um estúdio na Vila Leopoldina, em São Paulo, logo após uma animada sessão de fotos. Sem eufemismos ou meias palavras, Pitty narrou cada detalhe dos seus dias de inferno. O fato, ela diz, é que 2012 já terminou estranho, anunciando tempos difíceis. Pitty e sua banda não viviam uma boa fase. "As coisas estavam bagunçadas e também não pintava muito show. Banda é igual a casamento, chega uma hora que a gente escolhe se separar pra ver se gosta mesmo um do outro." Houve ali uma decisão mútua de dar um tempo. No meio do hiato, a cantora foi para o piano e lançou, ao lado de Martin, guitarrista de sua banda e um de seus grandes amigos, o projeto Agridoce. Baladas folks e letras em inglês formaram uma dupla improvável, que não estava em seus planos. "Agridoce foi importante. Um encontro com outro tipo de público e com uma artista que eu mesma não conhecia."
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Mas o suspiro do disco inesperado não amenizou o ano de 2013. Pitty teve uma experiência de "quase morte", como faz questão de ressaltar. A letra da canção "Sete vidas" fala de sua passagem pela UTI: "Era um mar vermelho, me arrastando do quarto pro banheiro’’. Foi uma semana internada. "Achei que era uma menstruação forte. Quando dei por mim, estava tendo um choque hemorrágico. Perdi muito sangue, tive que fazer transfusões e usar um cateter na veia do pescoço", lembra. O verso "o que sobra é cicatriz", da música "Serpente", é literal. Pitty canta Pitty.
A cantora saiu do hospital sem muitas respostas. No fim daquele ano, depois de meses de exames e de um tratamento disciplinado com um endocrinologista, recebeu o diagnóstico: hipotiroidismo. Isso ao menos explicava os quilos extras dos últimos meses.
Entre a internação e o diagnóstico, só tinha uma certeza, vivia uma doença autoimune. Pensou na hora: "O corpo fala. Doença autoimune é o corpo pedindo socorro, falando com você". Pitty engordou com a disfunção hormonal causada pelos problemas de tireoide. Mas por causa dela também reaprendeu a comer, perdeu 10 quilos e se viciou em atividade física, "a tal da endorfina", diz, rindo de si mesma. Recuperou seu próprio corpo e descobriu novos prazeres.
Junto do tratamento com o endocrinologista, aconteciam sessões de psicanálise junguiana. Na terapia pós-UTI, a cantora admite que aprendeu a lidar com suas fragilidades, seu perfeccionismo e o Transtorno de Ansiedade, diagnosticado há dois anos. "Não podia carregar o mundo nas costas, ou corria o risco de somatizar. A ansiedade, no meu caso, vem da obsessão pelo controle. Desde muito nova tive que tomar as rédeas da minha vida e não pude contar com ninguém. Mas nem tudo está nas minhas mãos. Tive uma lição de humildade."
Pitty vem de uma família pobre, mãe dona de casa e pai comerciante. Aos 14 anos percebeu que se quisesse autonomia precisaria ganhar seu próprio dinheiro. Começou a trabalhar como bike girl, por dois anos fez entregas por toda Porto Seguro, a cidade do final de sua infância. Largou o emprego para ser a garota do xerox no escritório de uma tia. Já tinha uma banda, Shes, formada só por garotas.
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Pouco depois, conheceu Peu Souza, amigo e guitarrista de sua banda por muitos anos. "Lado de lá", canção do último disco, fala dele. Peu foi encontrado morto em Salvador em maio de 2013, alguns meses após a alta de Pitty. Do suicídio do amigo, muita dor e algumas estrofes: "Quem sabe a dor venceu. Pra que essa pressa de embarcar?". Meses mais tarde, mais uma paulada: Joe Gomes, ex-baixista de sua banda, a processou por direitos trabalhistas. "Nunca imaginei que ele faria isso. Pra mim, foi uma espécie de morte, mesmo que simbólica." Pitty se contorce no sofá quando fala de Joe. Quer passar rápido pelo ocorrido e mudar de assunto, afinal esse é um tópico (mais um) que ela enterrou com 2013.
Boca no trombone
Todos esses infortúnios mudaram alguma coisa em Pitty. "Agora, tenho mais empatia com o que não sou", diz se referindo ao respeito às diferenças. O feminismo veio ao encontro da nova fase. Não que antes Pitty não brigasse pelos direitos das mulheres. Ela sempre foi feminista, "claro que sim! Só não era um feminismo batizado como agora", explica. "Nunca deixei de me posicionar contra a submissão da mulher. Desde muito nova, todas as minhas atitudes diziam isso." Então qual a diferença? Agora Pitty grita e curte o megafone que a fama lhe deu.
Quando berra no Twitter por direitos humanos não está de cabeça quente. "Penso dez vezes antes de falar ou postar qualquer coisa", garante. Pitty quer direitos iguais e uma sociedade mais justa, como sabe que sua voz ecoa, não poupa seus fãs do que pensa. E, quanto mais puder dialogar com outras mulheres, melhor. "Eu posso ser completamente diferente de outra mulher. Me vestir diferente, ser ideologicamente diferente, mas, se no final do dia, for julgada por gênero, ela também será. As pessoas não entendem como o machismo é nocivo pra sociedade".
"Nunca deixei de me posicionar contra a submissão da mulher. Desde muito nova, todas as minhas atitudes diziam isso"
Em dezembro de 2014, no programa Altas horas, ela se posicionou contrária a uma declaração da cantora Anitta. "Agora que ganhamos os mesmos salários que os homens…", disse Anitta. "Pera lá, não é bem assim", retrucou Pitty, lembrando a colega de que o mundo ainda é forrado de machismo. Ainda adolescente, quando adentrou o mundo do hardcore, Pitty percebeu isso. Para se proteger, usava a tática de se masculinizar. "Mais velha, descobri que não queria ser como eles, queria, sim, a liberdade deles."
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No Twitter, a cantora tem mais de 5 milhões de seguidores. E, toda vez que toma partido na rede social, vira notícia. Foi assim com os protestos do dia 15 de março, quando foi alvo de ofensas preconceituosas e "xingamentos impublicáveis" após dizer que jamais marcharia ao lado de extremistas de direita, fanáticos religiosos e saudosos da ditadura. Um dos recados dizia: "Quando terminar o mimimi, volte para a cozinha". A resposta foi retuitada mais de 27 mil vezes: "Pois eu não volto para a cozinha, nem o negro pra senzala, nem o gay pro armário. O choro é livre, e nós também".
A artista não é otimista com o atual momento político do país. Confessa que já teve vontade de ir embora do Brasil, mas as coisas mudaram, e hoje isso está fora de cogitação. "Minha vida é aqui, meu trabalho também. Nesse momento, minha cidade é São Paulo. Gosto da cor, do cheiro. É uma escolha estar no lugar onde estou e quero que aqui funcione."