De férias na Califórnia, a colunista perde a cabeça e cria “trauma” eterno nas sobrinhas
Quando acordei fazia um frio de 11 graus e o relógio marcava sete da manhã. Olhei para a janela, sempre aberta quando durmo sem minha mulher – que, ao contrário de mim, não tem medo do escuro –, e vi o dia nublado. Precisei de uma fraçãozinha de segundo para lembrar o que tinha feito na noite anterior. Meu Deus, como pude? A cabeça pulsava forte, resíduo da meia garrafa de vinho que tinha bebido sozinha em frente ao computador, e das quatro horas de sono maldormidas. Um frio gélido percorreu minha espinha. O que me resta a não ser levantar e acabar logo com isso? Saí da cama, tirei o pijama e coloquei o roupão de toalha que estava pendurado atrás da porta do banheiro. Andando lentamente como apenas os culpados são capazes de andar, e ainda esfregando os olhos, fui até o outro quarto, onde estavam minha irmã e minhas duas sobrinhas, Bruna e Mel, 7 e 5, espremidas em uma mesma cama. Notei que as três ainda dormiam pesadamente, uma enroscada à outra e todas de barriga para cima.
“Como conseguem dormir assim?”, pensei. E o que fazer diante daquela cena? Sinceramente, esperava que já estivessem de pé e aguardando minha chegada. Se não as acordasse naquele minuto, provavelmente perderia a coragem de executar o que havia prometido.
“Ei! Estou pronta”, disse chacoalhando as perninhas de Bruna.
Aos poucos, foram abrindo os olhos e entendendo o que estava prestes a acontecer. “Você vai encarar essa mesmo?”, perguntou minha irmã sentando na cama. “Ué, tem outro jeito?”, respondi. “Ai, Milly, como você é louca”, disse Bruna meio rindo, meio dormindo. “Quero o leitinho”, choramingou Mel se virando na cama e dando as costas para mim. “Não tem leitinho”, respondi ríspida. “Ou vocês levantam agora e vamos acabar logo com isso, ou eu desisto.” Nessa hora, acreditando na ameaça, todas elas pularam da cama.
Ato impensado
Vinte e quatro horas antes, num ato de pura estupidez, tinha prometido que se o Corinthians fosse campeão da Libertadores no jogo daquela noite eu, na manhã seguinte, correria pelada pelo jardim da casa que alugamos para 15 dias de férias. Jardim, vale explicar, que é separado da rua apenas por uma cerca viva que é mais viva do que é cerca. Como estávamos muito longe de casa, na hora que fiz a promessa aquilo parecia fazer algum sentido – e havia sempre a chance de meu time não vencer o tal campeonato tão desejado e eu não precisar sair correndo pelada pelo jardim. Mas, quando, na noite anterior, o juiz apitou o fim do jogo, a promessa ganhou as reais cores do absurdo que ela realmente tinha.
“Ai, Milly, como você é maluca”, repetiu Bruna rindo ao me ver abrir a porta da casa e sentindo o vento gelado entrar. “Ela tá pelada, mãe?”, perguntou Mel virando o rostinho para cima para encarar minha irmã. Assim que acorda, Mel precisa de pelo menos meia hora para conseguir fazer contato verbal e ocular com qualquer pessoa que não seja a mãe. “Vamos ver em um minuto”, respondeu Nininha esperando pelo momento em que eu tiraria o roupão. Mas eu tinha preparado um discurso e não ia começar a correr antes de colocar tudo para fora.
“Queria dizer o seguinte para vocês duas”, falei me inclinando para ficar da altura delas. Bruna me encarava, Mel olhava para algum ponto do jardim. “Queria dizer que sinto muito. Sinto muito que vocês tenham que ter essa imagem para o resto da vida. Sinto muito ter prometido uma estupidez como essa. Isso é para vocês aprenderem a pensar antes de falar, e a jamais deixarem de cumprir uma promessa, por mais idiota que ela pareça quando o porre passar.”
Brincadeira de criança
Bruna e Mel, sem entender muito o que eu queria dizer com tudo aquilo, riram meio sem jeito e olharam para a mãe antes de gritar “vai, Milly, vai logo”. Como outra coisa não restasse, respirei fundo, dei as costas para elas, deixei o roupão cair devagar e rompi pelo jardim, bracinhos para cima e gritando escandalosamente – um pouco por causa do frio e muito por causa do ridículo. Foram três voltas completas pelo perímetro, três longas e penosas voltas, sonorizadas por meu berro agudo e apavorado e gelado, e eternizadas pela câmera de minha irmã.
Eu tinha 8 anos, estava na casa de minha tia, no Rio, durante as férias de verão, quando ela chegou do trabalho toda carregada de pastas. Da porta da garagem, viu meus irmãos e eu na piscina, largou a bolsa e as pastas no chão, saiu correndo pela grama e pulou o pulo mais alto do mundo antes de romper a água dando uma bomba, para nosso completo deleite. Dinda, 73 anos, não é mais capaz de dar bombas em piscinas, mas vai ser para sempre aquela mulher com coragem de se comportar como uma criança no fim de tarde de uma quarta-feira qualquer.
Depois da corrida pelada, enquanto comíamos frutas e pães em nossa cozinha californiana, pensei que, com sorte, eu também poderia me eternizar na memória de Bruna e de Mel correndo pelada pelo jardim para um dia lembrá-las que a vida, esta jornada tão cheia de dor e de sofrimento e de perdas, só faz algum sentido se puder ser levada na brincadeira.
(*) A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com