Para Mariana Ferrer

Milly Lacombe
Paola Lins de Oliveira

por Milly Lacombe
Paola Lins de Oliveira

”Para uma sociedade machista e misógina, é inaceitável que arbitremos sobre nossos próprios corpos”, escreve Milly Lacombe em carta à Mariana Ferrer

Mari, a gente não se conhece, mas desde o momento em que assisti o vídeo da audiência na qual você é tratada como culpada pelo estupro que sofreu não paro de pensar em você. Não seria exagerado dizer que por você todas nós, ontem, choramos. Por você e porque naquela audiência você era eu, era minha mulher que escreve esse texto comigo, era minha mãe, minhas irmãs, minhas sobrinhas, minha vizinha. Naquela audiência você era a faxineira, a professora, a depiladora, a dona de casa, a balconista do supermercado, a atendente da loja de departamento, a advogada, a publicitária, a mãe solo da periferia. Aquela humilhação a que tentaram te submeter é território familiar a todas nós. Porque todas já fomos assediadas, todas já fomos abusadas, e nosso medo é justamente o de ser tratada como você foi.

Não sei dizer quantas de nós teria tido a força e a articulação com as quais você reagiu na audiência. É pesado demais. É uma travessia de dor e exposição. É ser abusada várias vezes outra vez. Denunciar o estupro é um ato de profunda coragem porque é sabido que durante essa jornada a vítima será tratada como culpada. É assim desde sempre. E por isso nos soa absurdante que alguém possa imaginar que uma mulher que denuncia o estupro está fazendo isso para estragar a vida de um homem (sim, há casos de falsas denúncias. Eles ficam entre 3% e 6% dos acusações, um número muito baixo para que essa argumentação da falsa denúncia seja recorrentemente usada). Mas a questão é outra e é muito anterior.

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O desejo sexual confere às mulheres um enorme poder sobre os homens. É por isso que desde o século 4 a sociedade dos homens se organiza para exorcizar esse poder regulando nossos corpos e nossa potência erótica. Olhando com atenção, o que se via naquela audiência eram quatro homens encurralados por esse poder. Amedrontados, acovardados, apequenados diante da sua potência. É que os homens só conseguem lidar com a gente se forem capazes de nos encaixar em dois papéis: o da santa ou o da puta. Por isso, e de forma tão desesperada, o advogado de defesa de André de Camargo Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, tentou jogar você na chave da puta, como se houvesse alguma coisa errada se esse fosse o caso.

O que está em julgamento não é a reputação de uma mulher. É o ato de violação do nosso corpo. É sobre um crime, não sobre como nos portamos socialmente. Ou o crime existe ou não existe – e é apenas essa a discussão possível. Há provas? As provas foram periciadas? As provas são contundentes? Há testemunhas? É sobre isso. Nossa reputação não está em debate. Podemos ser putas e podemos ser santas, podemos dar para quem a gente quiser, podemos começar a transar e então não querer mais, podemos ser e fazer o que bem entendermos com nossos corpos. Podemos pagar peitinho, andar com short enfiado na bunda, sentar de pernas abertas, postar foto sensual. São nossos corpos, nossos desejos. Mas para uma sociedade machista e misógina é inaceitável que arbitremos sobre nossos próprios corpos e que sejamos nós que decidamos quem pode e quem não pode tocá-los.

Quando não cabe a imagem da santa ou da puta só nos resta a classificação de bruxa: a mulher que conhece seu corpo, seu poder, sua capacidade erótica. Aquela que entende que o desejo do homem heterossexual é controlado pela mulher e que sabe que quem controla o desejo controla muita coisa, inclusive o poder. Por isso estupro não é, nunca foi nem nunca será sobre sexo; estupro é sobre poder. O poder que os homens gostariam de ter sobre o próprio desejo e nossos corpos, mas não têm e nunca terão. É tanto poder que faz muitos séculos que precisaram nos silenciar. Mas se nossos corpos são território de exploração, eles são também de resistência. 

Há 40 anos, no julgamento do assassino confesso de Ângela Diniz, ela virou ré. Mesmo morta, foi julgada por sua “conduta”. Quarenta anos depois, pouco ou nada mudou. A mulher que é vítima de violência pode perfeitamente ser julgada pelo crime cometido contra ela. A delinquência jurídica criada na época de Ângela Diniz para culpá-la pela própria morte foi o da “legítima defesa da honra”. No seu caso, a saída para inocentar o homem branco, rico e poderoso foi o “ele não teve a intenção de estuprar”. Vale de um tudo para que uma mulher não se sinta dona de seu corpo e de sua autonomia erótica.

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Evidente que se André de Camargo Aranha fosse um homem negro e pobre ele teria outro destino, mesmo se não houvesse tantas provas do crime cometido. Evidente também que se você fosse uma mulher negra provavelmente esse caso nem teria sido tão divulgado. Porque a cultura do estupro não é apenas sobre gênero e não está separada de classe e de raça. O imaginário de que estupro é o que faz um corpo negro encurralando contra um corpo branco numa esquina escura na calada da noite é apenas mais uma leitura do patriarcado.

Mas hoje a gente sabe que estupro não é apenas isso, e que essa é, aliás, uma pequena parte dos casos. Estupros acontecem à luz do dia, na sala do chefe, no quarto do tio, na balada da faculdade, na praia, na festa do amigo. Estupro é qualquer ato sexual que seja feito contra o nosso consentimento. Não requer penetração. Não requer nem mesmo que digamos “não”, em situações em que não temos condição de fazê-lo. Mas para os que detêm o poder do capital é preciso diferenciar o corpo negro que nos ataca na esquina do homem rico e poderoso que nos ataca na festa. Porque para o corpo negro pedem castração química e não é razoável ser comparado a ele. Como escreveu Laura Sabino no Twitter: “Estupro culposo é estupro institucional; estupro culposo é mais uma forma de dizer que só é estupro quando homens negros periféricos arrastam mulheres para becos”. Estupro culposo é a forma que acharam para que os homens ricos não se sintam iguais aos homens que eles tanto espinafram publicamente.

De cada uma de nós se espera amabilidade, gentileza, que nos comportemos e aceitemos nossos destinos. Com algum esforço há até os que hoje reconhecem nossa capacidade de refletir, desde que dentro das regras do jogo de uma razão supostamente neutra, descolada da experiência da vida. Essa racionalidade sem corpo, que se tornou o paradigma máximo da civilização, não nos interessa. A própria dicotomia razão x emoção, ou mente x corpo só serve para nos isolar, nos desumanizar. Na psicanálise, Freud constrói a mulher histérica como a mulher que não usa a razão, a mulher tomada pelos instintos. Ele não pensou isso à toa.

O feminino sempre foi associado à natureza que precisa ser domesticada. A razão é masculina; a emoção é feminina. É a civilização contra a selvageria, primeiro “em casa”: homem contra mulher; depois, no mundo: civilizado contra negro e indígena. O alto corporal conduz o homem; o baixo, a mulher. Quando o “homem” transforma a mulher no outro absoluto, cria imaginários de conveniência para reforçar uma distância em relação ao feminino. A mulher deixa de ser humana: é puta, santa ou bruxa. A mulher santa é a que controla o acesso ao seu baixo corporal. A profana é a que é dona do seu baixo corporal: dispõe dele como quer, é livre. E a mulher livre é temida porque não segue as regras do patriarcado e pode, assim, colocar tudo abaixo. Ela goza, vibra e ousa existir fora da instituição. 

Eu acho esquisito aqueles que conseguem separar emoção e razão em tempos tão injustos, brutos, sombrios, calamitosos. Eu quero a companhia dos que berram e choram; quero o abraço apertado dos que convulsionam e tremem. Quero a explosão daqueles em cujo peito pulsa a indignação. Mari, a gente espera que você esteja forte e que saiba que não está sozinha. São muitas mulheres do teu lado, muitas mulheres que vieram antes de você e enfrentaram os mesmos demônios. Mas sua resistência e sua potência serão farol para as que vêm depois da gente. Porque nós seguiremos existindo e resistindo. Até que, um dia, mudaremos o mundo de uma vez por todas e nunca mais nenhuma de nós terá que passar pelo que você está passando.

Créditos

Imagem principal: Mariane Ayrosa

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