por Luíza Karam

Juliana Kehl, cantora de voz suave e pensamento firme, conta como compõe e fala de um novo feminismo

Sem pressa, a paulistana Juliana Kehl, 32, vem se destacando em meio à nova safra de cantoras e compositoras. Seu primeiro disco, lançado em dezembro de 2009, demorou um ano para ser feito. E isso fica evidente na delicadeza dos arranjos, no esmero das letras, no equilíbrio do canto.

Formada em artes plásticas, Juliana começou a compor sem querer, num dia em que, relendo os poemas da irmã – a psicanalista Maria Rita Kehl –, resolveu musicá-los. De forma natural, vieram depois as letras, que, em sua maioria, retratam mulheres de diferentes facetas, todas marcantes. De tão femininas, as personagens parecem realmente existir. E pode ser que existam. “Minha obra é completamente autobiográfica e em primeira pessoa”, admite a criadora.

Apesar do aspecto confessional, as composições não têm cara de desabafo. Pelo contrário, os relatos, combinados à união de eletrônico com samba, entregam ao viés feminino um ar delicado, alegre e sem chororô. Como nos primeiros trechos da faixa “Rede de varanda” – que, segundo Juliana, é a que melhor sintetiza as qualidades do disco: "O que eu posso fazer/ Se a vida me devolve pra você?/ Me devolve pra essa rede de varanda/ Me devolve pra essa ilha de sossego/ Pra esse braço, pra esse beijo/ Então eu fujo, eu me fantasio toda/ Eu me faço de outra pra você me esquecer/ Conto os meus segredos, eu escrevo os detalhes/ Pra ver se você se assusta com o que vê/ A tua santa tá querendo te enlouquecer..."

Nesta conversa com o site da Tpm, ela fala de sua caminhada, de seus planos e do movimento cada vez mais forte que une mulheres artistas e talentosas.

"Não é porque nascemos sexualmente determinadas que seguimos tendências preestabelecidas por um manual. Eu busco o feminino e estou tentando entender que bicho é esse"

A impressão que dá é a de que seu disco é pautado pelo universo feminino...
Mas é mesmo. Isso é muito claro pra mim. Comecei a escolher o repertório do CD sem saber no que ia dar. De repente, percebi que estava se desenhando um viés e apostei nisso. O feminino virou meu material de trabalho.

De onde vêm as personagens – tão fortes – de suas músicas?
Nas músicas, conto sobre os momentos que vivo. Minha obra é completamente autobiográfica e em primeira pessoa. Falo em nome de mulheres, principalmente sobre temas que envolvem o amor.

E por que explorar tanto esse universo?
Me interesso desde a adolescência pelo exercício da coisa que é ser mulher, e resolvi explorar esse potencial, que não é óbvio. Não é porque nascemos sexualmente determinadas que seguimos tendências preestabelecidas por um manual. Eu busco o feminino e estou tentando entender que bicho é esse [risos]

Você sempre compôs?
Não. Comecei a compor meio sem querer. Eu era intérprete, mas ainda não tinha descoberto o que realmente queria cantar. Até que um dia, um amigo, que é produtor musical, me perguntou:  'Você compõe?'.  Foi um momento muito pontual, que serviu até como provocação pra mim mesma. Existia uma coisa que eu ainda não tinha tentado e que  tinha tudo a ver com o que eu queria. Naquele mesmo dia abri um livro, o Processos Primários, da Maria Rita [Kehl, sua irmã], e abri numa poesia que se chama “Sagitário” –  um poema lindo, que eu já gostava. Fiz, então, uma música. Musiquei “Sagitário” de ponta a ponta.

E como foi sua formação musical?
Meus pais ouviam muito erudito e popular e, por causa disso, sempre tive um envolvimento com música. O popular sempre falou mais alto, mas eu também ouvia “Requiem”, de Mozart, no fone de ouvido [risos].

Suas letras, sua maneira de cantar, suas melodias. Tudo, apesar de ser moderno, parece ter uma pontinha de samba antigo.
Ainda trago da infância essa dualidade de contemporâneo e antigo. Tenho o passado como referência. Mantenho um pé no contemporâneo e outro, nos sambas antigos de Chico [Buarque], Cartola, Tom Jobim...

E aplica isso em sua forma de viver?
Sou toda contraditória. Tenho uma relação com a memória afetiva muito forte e isso se projeta na música. Mas não é só um verniz de modernidade... tenho também referências muito contemporâneas. Eu transito em mundos diferentes. Além de ter a música, me formei em artes plásticas [na Faap] e comecei a dar aula no primeiro ano de faculdade. Fiz uma pós em arteterapia e, mesmo na pintura, trabalho com análise de música. 

Quando começou a cantar?
Aos 15 anos, quando entrei no Rudolf Steiner [escola paulistana, cujo ensino é baseado na filosfia Waldorf]. Eu participava do coro do colégio que, de tão bom, se apresentou até no Carnegie Hall [em Nova York]. Eu levava a aula de canto muito a sério, adorava cantar.

Sua voz já se destacava?
Ah, eu dava umas soladas... Mas era coro – o que, inclusive, eu acredito que seja uma boa vivência pra qualquer cantor. Você não pode se destacar demais. Tem que saber dosar. Aí eu saí da escola, fui fazer artes plásticas, e interrompi o canto.

Onde e quando você compõe?
Não tenho padrão algum. De nada. Sou totalmente errática. Adoraria dizer: “Ah, agora são 3 horas eu vou sentar lá e escrever”. Eu acho que a gente tem que estabelecer uma rotina com isso. Mas é difícil, eu não tenho rotina com nada. Na maioria das vezes, escrevo quando estou no carro.

Se lembra de alguma de suas músicas que você tenha escrito enquanto dirigia?
“Rede de varanda” eu compus no carro. E ela é superliteral – não tem uma metáfora sequer –, e bem cotidiana. A música fala sobre retorno. Sobre o fato de se sentir eternamente de volta numa situação amorosa, quando você acha que o fim já foi estabelecido. É um clássico. Os temas são clássicos e vão dos mais prosaicos aos mais profundos.

Tem alguma música que é a sua preferida, que você tenha algum apego?
A cada dia do mês é uma [risos]. Gosto de todas, mas sou bem variante. A “Rede de varanda” sintetiza mais a sonoridade do disco. “Ele não sabe sambar” conversa um pouco sobre questões femininas mais profundas... Exatamente por causa da contradição de se tornar ou não objeto de desejo do outro.

“Ele não sabe sambar” é uma composição provocativa, não?
A música provoca, com certeza. Ela retrata uma personagem que não quer ser comparada a outra; quer ser única. E, ao mesmo tempo, a personagem percebe que não é a única. Ela está imersa no mundo das mulheres. E pensa: “Me torno ou não objeto de desejo pra chamar a atenção dele?”.

É dolorido cantar a história de sua vida?

Às vezes sim. Mas a música muda de foco. O tempo vai passando e o tema não é mais exatamente aquele. A motivação não é mais a mesma. E tudo muda de lugar. A história de amor da música pode ser outra história de amor. Ainda bem! [Risos.]

"A manifestação efetiva da mulher na arte é muito recente, sobretudo no Brasil. Apesar disso, o boom de novas compositoras mostra como esse trabalho é intenso"

 

Sua irmã interfere em sua criação?
Ela não palpita, mas ajudou muito quando me emprestou suas poesias. Na verdade, não foi um empréstimo, mas um roubo. Um roubo do qual ela gostou muito. A Rita é um ícone do feminino, uma pessoa importantíssima nesse sentido. A faixa etária muito diferente [Maria Rita Kehl é 25 anos mais velha que Juliana] fazia com que a gente não tivesse uma conversa muito fluida em relação a questões como essa. A música nos aproximou.

Quando você começou a se interessar pela poesia dela?
Aos 15 anos só. Meu pai escondeu os livros da Rita de mim. Ele achava que aquilo ia me subverter [risos]. No meu primeiro contato com o Processos Primários, chorei copiosamente. Eu sentia do mesmo jeito que minha irmã. Existiu um encontro intelectual positivo e, ao mesmo tempo, natural. Fora o fato de ser irmã; ou pelo fato de ser irmã, não sei.

Você é amiga de Tulipa Ruiz, Karina Buhr... Outras cantoras e compositoras da nova geração. Você diria que  há um novo feminismo na música? Considero esse assunto superimportante. A conclusão a que eu chego é que a manifestação efetiva da mulher na arte é muito recente, sobretudo no Brasil. Apesar disso, o boom de novas compositoras mostra como esse trabalho é intenso. Acho que essas meninas são um estandarte na arte de um movimento novo.

Você acredita que seu trabalho contribua para esse “movimento novo”?
Eu busco contribuir muito – e muito bem – para isso abordando o assunto “mulher” de uma maneira digna. Foi assim desde o momento em que entendi o que estava se passando nesse novo cenário de mulheres na música.

Dominguinhos, [o violinista, compositor e produtor] Swami Jr, [o instrumentista e compositor] Marcelo Jeneci, [o jazzista] Itacyr Bocato, [o percussionista] Guilherme Kastrup... Muita gente de excelente qualidade participou do seu disco.
São 32 participações de grande qualidade.

Escolhidas a dedo?
Na verdade, eu nem acredito muito em escolha. Eu acho que as pessoas desconhecem muito a própria natureza, desconhecem muito o ambiente restritivo que nos cerca. Não sou fatalista, só acho que se a gente deixar entrar em sintonia – e isso que falo não é de forma exotérica – com a própria vocação, as coisas acontecem de forma natural, você se agrega às pessoas certas. Isso aconteceu comigo. De estar no lugar certo, na hora certa. Não sou sortuda, só estava aberta. (Em contrapartida, quando me fecho, me dano.)

 

Vai lá: Pré-lançamento do CD, dia 23 de março, no Grazie a Dio - r. Girassol, 67, Vila Madalena, São Paulo, SP, (11) 3031-6568; e lançamento oficial, dia 30 de março, no Sesc Pompéia - r. Clélia, 93, Pompéia, São Paulo, SP, (11) 3871-7700

 

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