Os quadrinhos de Camila Torrano podem chocar quem espera histórias melosas de amor: ”Até agora, nenhuma editora me recusou trabalho por ser mulher e, sim, porque é muito sombrio ou violento”
Na infância de Camila Torrano, a morte era um conceito extremamente abstrato. Ela não cresceu em um ambiente violento e seus pais não a deixavam ter contato nem com velórios. Mas, proibida de ver filmes de terror, era nos livros e nos games que ela tinha contato com assassinatos misteriosos, cadáver voltando à vida, monstros horrendos espalhando sangue pelo chão e fantasmas em casarões.
Assim, Camila se tornou fanática por terror, enfermeiras, anatomia humana e história da cirurgia médica. Não à toa, a tradução mais próxima de seu codinome, Butcherlady, é 'Açougueira'. "Não só adotei o termo, como criei uma roupa inspirada nessa mistura, toda suja de sangue. Por cima, uso um avental feito de peles humanas e uma máscara mortuária que esconde meu rosto. Não tem expressão, só os olhos se mexem, lembra o Leatherface, de O Massacre da Serra Elétrica", explica.
Desde criança, sempre fez quadrinhos. Era leitora de Turma da Mônica e mangás. Já algumas das séries preferidas por muitos leitores de HQs, como X-Men, ela lia, mas não se aprofundava por não se identificar com as personagens femininas. "No máximo com a Jean Grey ou a Tempestade. Nem a Vampira me interessava tanto", conta. Mais tarde foi apresentada a um mundo novo com Sin City. "A partir daí, percebi que quadrinhos não eram só comics norte-americanas ou mangás japoneses, havia um leque gigante de opções com diferentes representações femininas", explica.
Fã de games desde pequena, os jogos satisfaziam sua curiosidade mórbida ainda que não se identificasse com as personagens. "Meus pais não me deixavam ver filmes de terror, mas ironicamente me deixavam livre pra jogar DOOM e Heretic. Enfrentar monstros alienígenas, com tudo banhado em sangue e violência, cenários tenebrosos, caveiras pra todos os lados. Era fantástico!", empolga-se. Foi com Lara Croft, personagem de Tomb Raider, que ela teve o grande impacto na identificação. "Parece bobo, mas mudou minha cabeça, porque os exemplos mais fortes até então eram as princesas da Disney. A Lara é uma mulher independente empunhando armas e explorando tumbas, não a princesa presa no castelo esperando o príncipe", diz
Na minha história, primeiro veio a morte, depois o sexo
Em seu trabalho, Camila gosta de explorar e expor o grotesco como algo belo, ver beleza onde a grande maioria só vê repulsa. Além de morte e tripas espalhadas pelo chão, alguns de seus desenhos também têm uma pegada de soft porn, como as ilustrações Branca de Neve e os 7 Vibradores, Alice no País das Maravilhas (onde Alice cavalga em um vibrador gigante) e In Siririca We Trust. Ela acredita que, com trabalhos como o seu, esse assunto passa a ser tratado com mais desenvoltura e liberdade pelas criadoras de quadrinhos e por boa parte do público leitor. "As mulheres viram ali uma brincadeira com o prazer, não algo sujo ou ridículo pra punheteiro", conta.
Para ela, a importância da representação feminina diversificada e mais real tanto nos games quanto nos quadrinhos está na possibilidade das mulheres contarem suas próprias histórias. "Você não precisa ser sempre coadjuavante, apoio pro personagem branco e hétero. É mostrar que a criança gorda não precisa ser o excluído ou vilão, e que a menina negra também vive grandes aventuras ao lado de um monstrinho (como na animação Home)", diz.
Formada em Artes Visuais pela USP, Camila sempre circulou entre homens quadrinistas, foram eles que apresentaram a ela as possibilidades do trabalho independente e a convidaram a participar de projetos como Quadreca, Cão e O Contínuo. Para ela, eles a aceitaram bem porque buscavam diversidade, porque ela falava de assuntos que ou os agradavam ou intrigavam. "Uma mulher, falando de assassinato? Não é comum. Com certeza, se eu falasse sobre relacionamentos (na época), não teriam tantas portas abertas", acredita. Se por um lado sempre foi tratada com respeito, alguns desses quadrinistas não a olhavam como uma profissional igual a eles. "Mulher ainda tem que provar 3 vezes que é capaz ou até melhor do que os outros pra ser vista como profissional respeitável, mas não desanimei", conta.
Para ela, os quadrinhos são um meio machista e que vive uma crise de Peter Pan, mas a relação com os homens nunca foi seu maior problema. "Teve uma época em que fiquei tão desiludida com as picuinhas do meio de quadrinhos brasileiros que quase desisti. Foi quando me envolvi com games", conta. Camila trabalhou na área de Concept Art dentro do estúdio de games da Ubisoft Entertainment, em São Paulo. Hoje é também artista 2D na empresa de games Tapps, além de ser integrante do grupo Fictícia, onde publica HQs como Mayara & Anabelle.
Seu trabalho mais conhecido é A Travessia, de 2012, da Escrita Fina Edições, história que se passa no mar e é parte de um projeto idealizado pela ilustradora Janaina Tokitaka. O projeto conta com mais dois livros de terror feitos por outros artistas, que se passam no campo e na cidade de São Paulo. "Por conta da violência exacerbada, meu livro foi recusado e precisei reescrevê-lo por não ser um quadrinho destinado somente ao público adulto. No final das contas, fiquei muito feliz com esse corte. Me obrigou a trabalhar melhor outros aspectos da narrativa", conta.
Já suas tirinhas têm uma pegada mais nerd. Mas não o nerd clichê, como os personagens da série Big Bang Theory. Apensar de assumir ter feito parte do grupo dos excluídos do colégio, daquelas que aos 15 anos sonhava em viajar para o Egito, ela acha os rótulos limitadores e não se identifica com o tipo de nerd. "Minhas tirinhas refletem o universo que gosto e que posso fazer piada por conhecê-los bem", explica.
Ainda não podemos saber muito sobre seu próximo trabalho, que será anunciado em novembro. Mas ele será de humor e terá como protagonista uma mulher com mais de 70 anos, cheia de rugas e meio corcunda, nada de cintura de pilão e peitos biônicos. Mês que vem Camila lançará, também, uma compilação dos rascunhos e "trabalhos estranhos" de seu sketchbook "Açougue-Enfermaria", pelo selo Fictícia. Em 2016, finalmente será publicado Fábulas, quadrinho que vai abordar sua infância.
Uma coisa ela deixa bem claro: "Nenhuma das obras é para o público infantil, óbvio".
Vai lá: www.camilatorrano.com.br
*Gabriela Borges é jornalista e mestre em antropologia, especializada em história em quadrinhos. Autora da Mina de HQ.