Conhecendo de perto o caso de Maria Lúcia, descobri que conseguir se locomover com cadeira de rodas pode ser um gigante privilégio
por Mara Gabrilli | ilustração Lia Assumpção
Recebi no gabinete um pedido de cadeira de rodas. Até aí, nada diferente, pois esse é um pedido corriqueiro. Fui saber o porquê da necessidade. Até que chegou um documento com o diagnóstico médico de dona Maria Lúcia, acusando esclerose lateral amiotrófica, uma doença fatal sem possibilidade de tratamento. Por coincidência, eu acabara de receber uma doação de cadeira de rodas, após uma palestra que fiz no Clube Monte Líbano, em São Paulo. Chamei a Élica, da Abrela (Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica), para me auxiliar no caso. Fomos ao endereço, no Jardim Comercial, zona sul de São Paulo. Não tinha residência, mas a entrada de uma ruela estreita, íngreme e molhada que tangenciava os barracos mais humildes que já vi. Alguns, nem porta tinham! Só cortina de pano ou de plástico.
Fui descendo a ladeira por entre crianças, motoqueiros e olhares desconfiados que indubitavelmente questionavam minha presença ali. A descida foi dura... Pulei vários murinhos, daqueles de segurar enchentes, e poças de água com lixo malcheirosas. A morada da senhora é um cômodo de 5 metros quadrados a 70 centímetros abaixo do nível da entrada. Na parede, diplomas de quando exercia a profissão de cabeleireira e um quadro dela dançando com o filho Jackson na formatura dele. A mulher da foto nada tinha a ver com a senhora franzina de pele enrugada, cabelos brancos, sonda no nariz, com a boca numa toalha para enxugar a baba. Fomos acompanhadas de Jéssica, a filha mais nova. Aos 15 anos levava no colo o filho de um ano e meio, e no rosto, os olhos mais tristes que já conheci. Sua mãe não fala mais, pois a doença vai paralisando toda a musculatura do corpo, deixando o intelecto intacto e pouco movimento no globo ocular. Jéssica também não falava. Talvez de tristeza por ter que dedicar sua jovem vida a cuidar da mãe e do filho.
Dona Lúcia tem olhos arregalados e vivos, gesticula movimentos lentos com apenas uma mão, que diz “legal” ou “não”. Há dois meses ainda andava. Olhamos os exames, e ela nunca tomou o único remédio que consegue abrandar a evolução da doença. Élica tentou erguê-la e percebeu em seu cansaço a necessidade de ventilação artificial que infelizmente faz parte da história de todo portador de ELA. Chega uma hora em que a musculatura responsável pela respiração não responde mais. Como instalar um equipamento desse numa área onde toda eletricidade é gato? Se a luz acabar, dona Lúcia morre. Fiquei me perguntando o que faria ela com aquela cadeira de rodas, pois não cabia no cômodo e precisaria de umas quatro pessoas para empurrá-la morro acima!
A real função
Quando bateu 19h, Jéssica deixou o bebê conosco, catou a mãe nos braços e subiu a ladeira. Ela fica brava se perder o culto no domingo. Quando cheguei lá em cima, dona Lúcia estava na cadeira nova, esperando os irmãos da Igreja que vêm buscá-la. Uma vizinha exclamou que não sabia que ela não andava mais, porém parecia satisfeita sentada ali na rua!Entendi então a função da cadeira de rodas! Nesse dia descobri que conseguir se locomover com cadeira de rodas pode ser um gigantesco privilégio. Imaginem quantas Maria Lúcias existem por todo o Brasil!
por Mara Gabrilli | ilustração Lia Assumpção
Recebi no gabinete um pedido de cadeira de rodas. Até aí, nada diferente, pois esse é um pedido corriqueiro. Fui saber o porquê da necessidade. Até que chegou um documento com o diagnóstico médico de dona Maria Lúcia, acusando esclerose lateral amiotrófica, uma doença fatal sem possibilidade de tratamento. Por coincidência, eu acabara de receber uma doação de cadeira de rodas, após uma palestra que fiz no Clube Monte Líbano, em São Paulo. Chamei a Élica, da Abrela (Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica), para me auxiliar no caso. Fomos ao endereço, no Jardim Comercial, zona sul de São Paulo. Não tinha residência, mas a entrada de uma ruela estreita, íngreme e molhada que tangenciava os barracos mais humildes que já vi. Alguns, nem porta tinham! Só cortina de pano ou de plástico.
Fui descendo a ladeira por entre crianças, motoqueiros e olhares desconfiados que indubitavelmente questionavam minha presença ali. A descida foi dura... Pulei vários murinhos, daqueles de segurar enchentes, e poças de água com lixo malcheirosas. A morada da senhora é um cômodo de 5 metros quadrados a 70 centímetros abaixo do nível da entrada. Na parede, diplomas de quando exercia a profissão de cabeleireira e um quadro dela dançando com o filho Jackson na formatura dele. A mulher da foto nada tinha a ver com a senhora franzina de pele enrugada, cabelos brancos, sonda no nariz, com a boca numa toalha para enxugar a baba. Fomos acompanhadas de Jéssica, a filha mais nova. Aos 15 anos levava no colo o filho de um ano e meio, e no rosto, os olhos mais tristes que já conheci. Sua mãe não fala mais, pois a doença vai paralisando toda a musculatura do corpo, deixando o intelecto intacto e pouco movimento no globo ocular. Jéssica também não falava. Talvez de tristeza por ter que dedicar sua jovem vida a cuidar da mãe e do filho.
Dona Lúcia tem olhos arregalados e vivos, gesticula movimentos lentos com apenas uma mão, que diz “legal” ou “não”. Há dois meses ainda andava. Olhamos os exames, e ela nunca tomou o único remédio que consegue abrandar a evolução da doença. Élica tentou erguê-la e percebeu em seu cansaço a necessidade de ventilação artificial que infelizmente faz parte da história de todo portador de ELA. Chega uma hora em que a musculatura responsável pela respiração não responde mais. Como instalar um equipamento desse numa área onde toda eletricidade é gato? Se a luz acabar, dona Lúcia morre. Fiquei me perguntando o que faria ela com aquela cadeira de rodas, pois não cabia no cômodo e precisaria de umas quatro pessoas para empurrá-la morro acima!
A real função
Quando bateu 19h, Jéssica deixou o bebê conosco, catou a mãe nos braços e subiu a ladeira. Ela fica brava se perder o culto no domingo. Quando cheguei lá em cima, dona Lúcia estava na cadeira nova, esperando os irmãos da Igreja que vêm buscá-la. Uma vizinha exclamou que não sabia que ela não andava mais, porém parecia satisfeita sentada ali na rua!Entendi então a função da cadeira de rodas! Nesse dia descobri que conseguir se locomover com cadeira de rodas pode ser um gigantesco privilégio. Imaginem quantas Maria Lúcias existem por todo o Brasil!