Mara Gabrilli: com presas da penitenciária, passo pelo instante mais feliz que já vivi
Já contei aqui sobre minha primeira palestra em um presídio feminino. Depois daquela, feita às vésperas do Natal de 2010, fiz outras mais e cada uma foi diferente de um modo maravilhoso. Em comum: o dia da palestra é um evento. Elas se arrumam, pintam as unhas, cabelos bem penteados, muitas estão maquiadas. Todas se emocionam – eu inclusive –, muitas choram do começo ao fim, em meio a pensamentos e reflexões que provoco falando de liberdade, de superação, do poder das nossas atitudes e da capacidade de recomeçar.
As mulheres não paravam de gritar, deixando uma atmosfera de insanidade e emergência, uma tensão de algo prestes a explodir. Como o primeiro andar é ligado ao quinto por um vão livre, elas se comunicam como se estivessem lado a lado. Ao passar pelas grades do primeiro portão, as vozes gritando me atingiram por completo e só foram ficando mais e mais intensas ao avançar por novos portões.
Quando entrei carregada na penitenciária feminina Sant’Ana, que fica no que restou do antigo complexo Carandiru, o impacto foi imenso. Ao passar pelos corredores que unem os diversos pavilhões, com pé-direito e janelas altos, me dava a impressão de voltar no tempo, séculos atrás...
Os corredores amplos contrastavam com os pavilhões apertados de muitos andares onde o burburinho ficava mais intenso. São quase 3 mil mulheres ali cumprindo sentença por seus delitos, a maioria, como na primeira ocasião, 1 e 9 – jargão utilizado para a pena por tráfico de drogas. Mas muitas cunhadas com penas de mais de cem anos por chacinas.
Em Sant’Ana fui cobrada com atitude: não adianta vir aqui falar tantas palavras bonitas e ir embora sem olhar pra trás e esquecer da gente... Perguntei o que queriam. A resposta me surpreendeu: mais cuidados com a saúde feminina, exames de colo do útero e da mama.
Pensei na dificuldade em convencer muitas mulheres a fazerem essa prevenção tão importante, passando o ano sem encontrar tempo para um check-up, e elas lá, excluídas do convívio social e pedindo por isso...
Poucas semanas depois, ainda impactada por esse encontro, fui a outra unidade, em São Miguel Paulista, bem menor e com cerca de 200 reeducandas apenas.
Felicidade plena
Depois de minha fala, elas me presentearam com três apresentações: uma musical, outra de dança e no fim uma peça de teatro que representava os arquétipos femininos com sete exemplos retirados da mitologia grega. Por meio de Ártemis, Atenas, Hera, Héstia, Deméter, Perséfone e Afrodite, elas falaram de maternidade, beleza, saúde, coragem, amor, sensualidade, casamento e tantos sentimentos de resgate do feminino que eu queria ficar mais um pouco ali... Pensei naquele momento, dividindo nada menos que afeto com desconhecidas e presas, que passava pelo instante mais feliz que já vivi. Aquelas muitas mulheres tinham, cada uma, um pedacinho de mim... E eu também mostrei, em cada palavra, um pedacinho de cada uma delas. Aquilo tudo parecia um prêmio por merecimento, um programa cultural escolhido a dedo nas férias em lugar estrangeiro.
Em todos os presídios me fizeram uma mesma pergunta: se mesmo tetra é bom namorar. Em meio aos beijos e abraços emocionados daquelas mulheres, descobri que somos todas deusas.
Disso tenho certeza.
Mara Gabrilli, 43 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br