Onde a verdade se esconde

por Redação
Tpm #75

Ou sobre como minha vida mudou radicalmente depois de ir ao banco

 

Era uma sexta-feira como outra qualquer, talvez um pouco mais ensolarada, um pouco mais quente, um pouco mais promissora, ainda que sextas-feiras sejam sempre cheias de sol e calor, mesmo quando chove e faz frio. A antecipação do fim de semana, de tardes no sofá, de manhãs com sobrinhos, de noites sem hora para acabar ao lado de meu amor colocam tudo em perspectiva. O que mais importa? Amar, ser amado, amigos, família, ócio sem culpa – a verdade, afinal, se esconde atrás de cada fim de semana. Envolvida pela expectativa, acabei de almoçar, sozinha com meu jornal, e, antes de voltar à redação, parei no banco para pagar o IPTU. Foi ali que tudo começou a mudar.


A senhora não tem saldo para pagar essa conta, sentenciou o rapaz do caixa.
Tenho sim.
Não tem não. Sua conta está bloqueada judicialmente em R$ 500 mil.
As primeiras gotas de suor começaram a escorrer imediatamente. Mesmo sabendo que a cena era absolutamente improvável, ouvir que sua conta está “devedora” em meio milhão de reais não é notícia de fácil digestão. Com a perna trêmula, deixei que a fila andasse e fui fazer algumas ligações a fim de tentar desvendar o mistério.


Vinte telefonemas e três horas depois, descobri o tamanho da encrenca. Há 16 anos, havia feito um favor a um amigo e passado oito meses como sócia minoritária de sua empresa enquanto ele procurava um outro sócio de fato. Nunca soube que havia processos trabalhistas contra essa empresa, muito menos que esse meu amigo de 20 anos passados havia, faz alguns invernos, vendido tudo e ido morar em Miami. Mas, naquela sexta-feira de fevereiro, fiquei por dentro da absurda realidade: era eu a única sócia que tinha alguma coisa em seu nome – até porque, os verdadeiros gestores, sabendo da coisa, tinham tirado tudo de seus respectivos CPFs. Ou seja, a conta estourou para quem nunca teve a ver com a dívida. Ah, a justiça dos homens. Como nada é tão ruim que não possa piorar, descobri que o processo fora movido por um outro amigo, jornalista como eu, duro como eu, desencanado como eu. O que parecia uma ótima notícia – porque esse outro bom amigo poderia simplesmente informar ao juiz que eu fora usada, que era peixe pequeno e que abriria mão de me executar já que era testemunha de que eu nunca fora sócia de fato – acabou virando a pior de todas: meu tal amigo, a princípio muito solidário e garantindo que faria tudo para me tirar da encrenca, foi facilmente convencido pelo advogado a não me excluir da diversão. Além de terem a chance de arrecadar o pouco que juntei na vida, ele e o advogado pretendiam usar meu desespero para chegar ao tal cara em Miami: se eu me movimentasse para encontrá-lo, eles me tirariam da execução – nada como a cruel chantagem vinda de uma alma conhecida.

 

Sem vida, sem poesia


E foi assim que, numa sexta-feira qualquer, perdi tudo o que tenho: carro, investimento, salário. Tentei me consolar pensando que dirigir um carro velho, nunca ter comprado um imóvel e ter economizado quase nada parecia, finalmente, ter sido um excelente negócio. Mas minha cabeça não ajudava: era pouco, mas era tudo. Mais do que meu patrimônio, naquela sexta-feira fria e chuvosa, perdi a inocência, a alegria e deixei de ver a vida com poesia – naquela sexta-feira, me perdi de mim. Tudo o que sempre preguei, essa babaquice de que só o amor vale a pena, essa infantilidade de que nada importa a não ser amar e ser amado, essa cretinice de que a vida não é para ser levada a sério, de que precisamos dançar mais, rir mais, amar mais, beijar mais, tudo caiu num grotesco saco de realidade. A vida se mostrou, pela primeira vez, extremamente séria, sem graça e injusta. Uma imagem dela que não tive nem quando meu pai morreu. E assim engatinhei até minha casa para deixar que o fim de semana passasse por mim. Sem falar, sem comer, sem dormir, fui apresentada a uma parte de mim que não conhecia: eu, adulta e amargurada. Eu, deprimida e melancólica. Eu, irremediavelmente triste. Amigos ligavam, irmãs mandavam mimos, a mulher paparicava e beijava. E eu, largada no sofá, queria simplesmente desaparecer.


Na segunda-feira, como outra coisa não me restava, reagi. Advogados, petições, liminares, despachos, audiências, mandados de segurança: naveguei bravamente por um mar que pretendia jamais conhecer. Entre um fórum e outro, me martelava: como pude passar anos e anos escrevendo sobre o amor, como se apenas isso importasse? Como pude passar tanto tempo falando docemente do passado como se alguma relevância ele tivesse? Por que tanto peso dado à liberdade se estamos, isso sim, eternamente confinados à injustiça dos homens? A verdade, quem diria, se esconde entre uma manhã de segunda-feira e uma tarde de sexta-feira. Meu mundo, doce e divertido como uma manhã de sábado, conforme eu o desenhei, havia implodido. Arrastei-me semana adentro: a vida, cinza, densa, fria e amarga, se fazendo conhecer a cada instante.

 

É bem longe que estou indo


Outra sexta-feira chegou: nenhuma alegria diante da expectativa do descanso. Mais uma vez, engatinhei até meu casulo para esperar o fim de semana passar por mim. Antes, dei um pulo na casa de minha irmã, para comer alguma coisa. Na sala, deitada no sofá brincando com o próprio pé, apenas Bruna, a afilhada de 2 anos. Ah, que inveja, pensei. Nada sabe sobre a dureza da vida, sobre a injustiça do mundo, sobre a tristeza que está em mim agora. Ela sorriu e eu, num reflexo, sorri de volta. Era a primeira vez que sorria em uma semana. Quando Bruna abriu os bracinhos para me receber e me agasalhou, me deixei entrar em uma fenda no tempo. Ali, ajoelhada em seu colo, me vi novamente alegre e leve. Ali, a vida voltou a ficar colorida. Ali, as coisas foram colocadas em perspectiva. O despretensioso e demorado abraço de Bruna mudou, naquela sexta-feira tão fria, o clima do meu mundo.


Talvez a vida não seja aquela festa que eu imaginei um dia, mas certamente não é esse deserto em que me meti. Podemos ter que pagar contas que não são nossas, podemos ter que ceder à injustiça dos homens, podemos ser traídos. Mas o abraço da criança que é um pouco o que fomos e ainda somos não pode ser roubado: enquanto houver liberdade para que criemos e amemos, a vida tem uma chance. Proust escreveu que não se deve ter medo de ir longe porque a verdade se esconde depois disso. Veremos. Porque, pelo que parece, é bem longe que estou indo.

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