Malu Mader elegeu o texto de um dos mais respeitados violinistas da atualidade
Malu Mader, editora convidada especial desta edição, elegeu o texto de um dos mais respeitados violinistas da atualidade para trazer à Tpm a atmosfera de Contratempo – documentário que marca a estreia da atriz como diretora
Contratempo abriu o coração das crianças e o nosso também. Contratempo é um documentário de Malu Mader e Mini Kert, feito em forma de poesia, de enlevo, de paixão, que não é nem contratempo nem documentário, é vida pura, puríssima. A música vai descendo em cascata das favelas do Rio de Janeiro, trazendo os passos dos adolescentes em terrenos escorregadios e perigosos, mas conduzindo-os para a terra dos sonhos de um Villa-Lobos ou um Augusto Rodrigues. O Brasil explode o Brasil diariamente e continuará explodindo até ser passado a limpo por várias gerações. Trabalho de formiguinha, de Sísifo. Mas recompensador como esse filme encantado.
Em 1930, Heitor Villa-Lobos criava a Sema [Superintendência de Educação Musical e Artística, que introduzia o ensino da música e do canto coral nas escolas do Rio de Janeiro] e, através dela, semeava a cultura musical tendo como ferramentas a manossolfa e a voz humana. A primeira era um sistema de ditado musical a distância, usando configurações de dedos e conduzindo professores e alunos a cantarem um repertório recolhido por ele mesmo através de todo o país. Já a voz é e era a forma preferida de expressão artística dos brasileiros. Com esses elementos, Villa-Lobos criou o melhor sistema de educação musical do país até 1945.
Em 1960, a eclosão de vários movimentos musicais no Brasil mostrava o quanto nosso grande compositor estava certo. Uma geração impressionante de jovens talentos aparecia e vinha ajudar a nos proteger de nuvens sombrias que pairaram sobre o Brasil até a redemocratização.
Em guerra
Hoje são outras as ameaças, mas igualmente assustadoras. Corrupção, crimes, violência, drogas, burocracia e uma falta de perspectivas para os jovens. Mais do que nunca precisamos recorrer à música para consolidar uma verdadeira educação. O sentimento das crianças nos fala disso durante todo o filme de Malu e Mini. Às vezes de maneira ostensiva e trágica, como a morte de Thiago; outras, sutilmente, como as tiradas de Rafael e Ramon e as dos impagáveis gêmeos da Grota do Surucucu, Walter e Wagner.
A educação musical feita por voluntariado é um exercício difícil mas indispensável para os brasileiros. Ela provoca os organismos oficiais e os retira do marasmo burocrático na solução do futuro dos brasileirinhos, ela ativa as outras artes por poder iluminar caminhos com mais facilidade no sentido da construção das pessoas (cantar em grupo é mais fácil e muito estimulante), ela nos diverte e nos emociona, ela nos conduz ao coração da civilização.
Mas que civilização, se, no século passado, países altamente cultos e educados quase acabaram com o planeta em duas guerras mundiais? Se hoje a guerra brota em cada esquina da terra, no confronto de economias, religiões e culturas?
Estado puro
Defronte de dúvidas tão brutais, ouso me aconchegar nesse maravilhoso Contratempo de Mini e Malu e rezar para que todos recebam o sentimento das crianças, que nos ensina em sua total pureza o que nunca os mais velhos puderam nos ensinar, ou tentaram e não conseguiram.
Volta a imagem fortíssima de Villa-Lobos, que deixou sua criança interna perpassar toda sua obra e toda sua vida. E não foi o único. Criadores de todas as artes vão buscar a força da criança que já foram e nelas ressuscitam a beleza em estado puro.
Nós, pais, já fomos encarados por aqueles olhinhos reprovadores quando fazíamos algo que não deveríamos. E quantas vezes agradecemos aos céus a presença daqueles pequenos seres a nos salvarem e impedirem desmandos dos quais nos arrependeríamos para sempre?
Viva Rafael, Marcela, Thiago, Pedro, Ramon, Jefferson, Diego, Marcos, Raquel, Walter, Wagner e todos esses queridos meninos músicos que a partir de agora olharão sempre por nós através do mágico Contratempo.