O recado do morro

por Décio Galina
Tpm #79

Nascido e criado na favela do Vidigal, Thiago Martins encarna Dé, protagonista de Era uma Vez....

O recado do morro

Nascido e criado na favela do Vidigal, Thiago Martins encarna Dé, protagonista de Era uma Vez., em que ficção e realidade se misturam numa história de amor. Neste ensaio, ele e seus 19 anos esquentam as páginas da Tpm

 

 

 

Blecaute no Vidigal. Os olhos se arregalam. Procuram luz na escuridão. A respiração acelerada parece prever o terror das próximas cenas. Começa o tiroteio. Bala pra todo lado. Gritos, correria, a expectativa da morte, ali, no breu, espreitando. Os homens da lei tentam invadir o espaço dominado pelo tráfico na favela da zona sul do Rio de Janeiro. Atiram a esmo. A chuva de chumbo fica mais intensa. No meio do fogo cruzado, quem é trabalhador, e nada tem a ver com a guerra, deita no chão. Põe a mão na cabeça. Reza.Torce pra não descer o morro dentro de uma gaveta do IML e virar estatística de jornal. Enfim,o pior acontece.Carlos, que investia as horas de lazer numa cervejinha com os colegas da comunidade, sente que foi atingido no pé, pela polícia. Crueldade. Na roda de parceiros, não é a única vítima inocente que se esvaia em sangue. Um amigo agoniza após ouvir o abafado estampido do projétil perfurando o lado direito do peito. Parece o fim. Mas só parece. Não é hora de Carlos e seu chapa abotoarem o paletó de madeira. Eles se safam com vida e a história é arquivada entre tantas na memória do morro.

Quem respirou aliviada com o desfecho positivo do parágrafo anterior foi a paraibana Maria Lúcia dos Santos, mãe de Carlos, hoje com 28 anos. Thiago, o caçula da família, também deu graças a Deus, pois, se perdesse Carlos, não ficaria apenas sem irmão - viraria órfão do grande ídolo. "Ele é o mestre; eu sou o aprendiz." O cotidiano muitas vezes implacável da favela molda a personalidade de jovem correto ("nunca experimentei maconha,nem por curiosidade") e contribui para a maturidade precoce do jovem ator Thiago Martins, de 19 anos ("sei que existem dois caminhos; somos tentados o tempo inteiro a passar pro outro lado, mas isso leva pro abismo").

 

Protagonista da vida real

Ele nasceu no Vidigal e freqüenta o grupo de teatro local, o Nós do Morro, desde os 4 anos. Se na vida real Thiago celebra o final feliz do tiroteio que quase levou seu irmão, o mesmo não pode se dizer do filme brasileiro que ele protagoniza e está em cartaz desde o fim de julho: Era uma Vez., de Breno Silveira, segundo trabalho do diretor, que fez 2 Filhos de Francisco, um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional.

Antes de entrar em circuito, o Era uma Vez. abalou fortemente os espectadores das pré-estréias. De gente simples, como moradores do morro, a pessoas com muita experiência no circuito cultural, como Guti Fraga, diretor do Nós do Morro, todos se emocionaram demais com o desenlace da história de amor entre Dé (Thiago Martins) - morador da favela de Cantagalo que vende cachorro-quente no quiosquede praia - e Nina (Vitória Frate) - filha única que vive na Vieira Souto sob a saia da família rica.Até a mãe de Breno Silveira entrou no coro das pesadas críticas. Essa catarse generalizada levou o diretor a modificar o final do longa, convocando Thiago para criar um depoimento em primeira pessoa que fizesse um paralelo entre a vida real e ficção."Você está louco!", foi a reação inicial de Thiago para o diretor do filme. "Mas depois entendi a intenção e fiz o que ele pediu." O rapaz explica que sua facilidade para escrever vem de outra vertente artística: "Sou vocalista e compositor da banda Guerreiros de Jorge, que tem 2 anos e 13 músicas. Componho sobre o cotidiano da favela, sobre o estado do Brasil, sobre política". A inclusão do depoimento no epílogo de Era uma Vez. deixou o ator principal ainda mais animado com o filme. "Estou muito feliz por ser meu primeiro papel como protagonista. E é um filme eterno. Meu filho vai ver esse filme. Estou orgulhoso de representar o trabalhador brasileiro. A gente já viu o lado da polícia em Tropa de Elite, viu os bandidos em Cidade de Deus e, agora, é a vez de uma linda história de amor dentro da favela. A história de um Brasil separado, onde ricos não se relacionam com pobres. Quando vi o resultado final, falei pro Breno: ‘Esse filme é um grande abre-alas, a gente vai quebrar barreiras do preconceito e vai construir pontes para que as pessoas possam se respeitar'." Palavras de Thiago Martins - e não esqueça a idade dele: 19, faz 20 em setembro.

 

 

Tem açúcar?

Mesmo com a experiência de quem já havia participado do filme Cidade de Deus e da série Cidade dos Homens, além de três novelas (Da Cor do Pecado, Belíssima e Desejo Proibido), Thiago precisou de uma sexta chance e só conseguiu a vaga em Era uma Vez. depois de suar muito."Fui recusado pelo Breno cinco vezes porque eu tinha acabado de sair de uma novela das oito. Ele falava que não queria que as pessoas se apaixonassem pelo garoto da novela. Ele procurava um ator negro. Mas tenho uma coisa comigo que, se entro na guerra, entro pra ganhar. Então, raspei a cabeça com máquina um, pintei o cabelo de um jeito que ficou uma cor meio mofada e, num belo domingo de sol, fui pra praia às oito da manhã e só saí às cinco da tarde. Fiquei queimadaço. Quase tive ensolação. Aí, tive a sorte de fazer uma cena que envolvia beijo e nervosismo, o que me ajudou, pois realmente estava nervoso. Saí do teste, tive uma crise de apendicite, fui operado, e o Breno me ligou no hospital para dizer que o papel era meu. Acho que fui guerreiro. Fui São Jorge mesmo", comenta o ator fazendo referência à imagem que leva pendurada no pescoço.

Prestes a aparecer nas telas do cinema também como protagonista de Show de Bola, do diretor alemão Alexander Pickl, Thiago recebeu a reportagem da Tpm em um hotel de São Paulo, às 11 da noite do dia 18 de julho, na véspera de fazer este ensaio. Uma das primeiras coisas a dizer foi que não queria tirar a camisa durante as fotos. Preocupação que desapareceu diante da fotógrafa Renata Ursaia - ele ficou sem camisa mesmo quando não precisava. Na entrevista, pediu para não revelar o nome da namorada com quem estava havia dois meses - embora o próprio site de celebridades da empresa onde ele trabalha já tenha divulgado fotos dos dois juntos (http://ego.globo.com). O papo é interrompido por três telefonemas: dois do ator Bruno Gagliasso, amigão a quem chama de "meu pai", e outro de uma moça - "Fê, não dá pra falar agora, estou numa entrevista".

Thiago não teve melindres para contar que seu primeiro beijo foi aos 11 anos e que a primeira transa foi aos 12, com uma vizinha de 22. "Ela perguntou: tem açúcar?

Tem. Posso pegar? Pode. Posso tomar banho? Banho? É. vem comigo. Aí fui tomar banho com ela e foi incrível." Thiago prefere moças com "conteúdo". "Gosto de aprender coisas novas e ensinar também. mostrar meu mundo" - qualquer semelhança com o Dé, de Era uma Vez., é mera coincidência. E você é fiel, Thiago? "Mano, acho que não existe fidelidade. Sou a favor da lealdade. Sentimento é muito doido. Por dia, você sente milhões de vontades. Se tiver que fazer, vai fazer."  Na hora da paquera, ele sempre fica de olho na boca das meninas."A minha também é grandona, puxei a do meu pai", diz, lembrando o taxista Agostinho, carioca descendente de português e alemão, que se separou da doméstica Maria Lúcia quando Thiago tinha 3 anos."Meu pai é do tipo boêmio, malandro, trabalha na escola de samba de São Clemente. A gente se vê umas duas vezes por semana."

 

Faixa de Gaza

Fissurado na prática do bodyboard e torcedor roxo do Flamengo, o ator quase escolhe o futebol como profissão - quando pensava em fazer as malas para jogar em Portugal, foi chamado para sua primeira novela, Da Cor do Pecado, e por aqui ficou. Vivendo a melhor fase dos seus agitados 19 anos, Thiago aponta como maior medo "decepcionar minha mãe, sendo uma pessoa que ela não quisesse que eu fosse". Quando questionado sobre um momento difícil na vida, ele pensa e responde que ainda não teve: "Deus é muito meu amigo. Falo com ele toda noite". O moço não planeja sair do morro. "Gosto mesmo é de curtir um churrasquinho com os amigos numa laje do Vidigal, tomando banho de mangueira, ouvindo um som legal [suas bandas preferidas são Legião Urbana, MV Bill, Racionais, Coldplay e Los Hermanos]. Antes, a gente morava numa área de risco, na Faixa de Gaza do Vidigal. Mas inteirei um dinheiro e comprei um apartamento para a minha mãe, no início do Vidigal, lugar que não tem perigo, de frente pro mar, quatro quartos, maneiro. Ali, estou perto de tudo e tenho meu porto seguro, que é o Nós do Morro, onde fico descalço, faço aula de capoeira e tiro o chiclete que está agarrado no chão."

 

fechar