O pior lugar do Brasil para ser mulher

A cidade de Paragominas, no Pará, tem a maior taxa de homicídios femininos no País

A cidade de Paragominas, no Pará, tem a maior taxa de homicídios femininos no País. Tpm foi até lá para entender o que perpetua esse ciclo de machismo e brutalidade

Para Antonia Leonice Pereira Jacxes, 26 de abril de 2009 ainda ricocheteia em suas memórias como “o dia em que fiquei muito deformada, muito feinha”. O ex-companheiro entrou em sua casa, às três da manhã, com um facão. Então com 38 anos, ela contou nove golpes que esburacaram sua carne feito “queijo com buraquinho”. Foi atingida no rosto, no ombro, nos glúteos, na coxa e quase teve a orelha direita decepada. “Ficou pendurada por um fiapo de carne.” A filha adotiva de 12 anos entrou no quarto ao ouvir os gritos. Edinaldo atingiu o pulso da menina. Só aí fugiu.

Antônia Leonice e sua caçula, Maria, por pouco não viraram números de uma triste estatística de Paragominas, cidade paraense a 322 quilômetros de Belém. O Mapa da Violência (que tem como fonte o Sistema de Informações de Mortalidade da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde) mais recente, de agosto de 2012, aponta o município como detentor da maior taxa brasileira de homicídios femininos: 24,7 assassinatos em 100 mil mulheres, contra uma média nacional de 4,4. “É uma região de grilagem, de mão de obra escrava, de extermínio de populações indígenas. Uma estrutura que acentua a histórica cultura da violência. Qualquer diferença pode ser resolvida exterminando o próximo. A vida humana vale muito pouco”, diz o autor do mapa, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Parceria entre a Unesco e o Instituto Ayrton Senna, o primeiro relatório foi traçado em 1998 e tinha como tema a juventude brasileira.

O pico da violência ocorreu em 2010, quando o número quadruplicou em relação ao ano anterior – de três mortes violentas para 12. Ou seja, uma vítima por mês numa cidade com 98 mil habitantes, população equivalente à do bairro paulistano de Perdizes. Uma certidão emitida pela 13ª Delegacia Seccional de Paragominas, “referente à prática do crime de HOMICÍDIO DOLOSO em desfavor de mulheres [sic]”, registra “apenas” nove casos em 2010.

 

"Leonice foi 11 vezes à delegacia. Em algumas delas, os policiais não levaram a sério. 'Não bateu, não tem barca', falavam"

 

O caso de Leonice, “a retalhada”, nunca saiu da cabeça da delegada Mahenalva Helena Furtado. Com 1,58 metro de altura e 50 quilos, de crucifixo no pescoço, Mahenalva era a morena mignon que mandava na Delegacia da Mulher local – o espaço está fechado 
para reforma há sete meses. Hoje com 31 anos e 6 quilos a mais, aos cinco meses de gravidez ocultos sob uma bata branca, ela tem convicções que se ajustam feito seu jeans coladinho à situação em Paragominas. “Os outros delegados brincam: ‘Não tem lei Mário da Penha?’. E eu digo: ‘Mário? Que Mário?’. Vamos tratar os desiguais de forma desigual. Se nós, mulheres, somos fisicamente inferiores, precisamos ter proteção maior do Estado.”

Mahenalva se formou em direito na Universidade Federal do Pará, na mesma Belém em que nasceu. Conseguiu uma das cem vagas num concurso para a polícia civil, com provas físicas (como correr 1.600 metros, pouco mais da metade da avenida Paulista, em até 12 minutos). Passou três meses na Academia de Polícia até aprender a atirar com sua pistola semiautomática, modelo 24/7. O protótipo passa a ideia de que é uma arma pronta para o combate 24 horas por dia, sete dias por semana. Mais ou menos como a delegada se sente exercendo sua função.

Tipo peixeira

Os boletins de ocorrência dão uma ideia do que se passa na cidade. São histórias como a de Carlos e Tereza, que “estavam em casa ingerindo bebida alcoólica”, segundo o documento, quando começaram a discutir, “tendo ele em dado momento pego uma faca de cozinha e desferido vários golpes nela”. Homicídio doloso.

Ou a de Lidiane, casada há 13 anos com Edvaldo, quem denunciou várias vezes à Justiça e para quem sempre acabava voltando. Até o dia em que “ele chegou embriagado, quis discutir com a depoente, e num momento de raiva chutou a máquina de lavar, tendo quebrado a tampa do eletrodoméstico, [...] para então sacar uma faca, tipo peixeira, que já estava em sua cintura”. Nesse dia, Edvaldo ainda tentou matar uma vizinha de 17 anos, numa casa onde Lidiane procurara refúgio, embaixo de uma cama, antes de ligar para o 190. Lesão corporal grave.

A Lei Maria da Penha, inclusive, já serviu para enquadrar uma mulher – que tentou esfaquear a namorada. “Só que a agressora deu uma entrevista na TV dizendo: ‘Amo ela’. A vítima viu e me pediu: ‘Doutora, não quero que ela seja presa, ela disse que me ama’”, lembra Mahenalva. Tentativa de homicídio.

Em 2012, um Tribunal do Júri composto em sua maioria de mulheres inocentou um homem que jogou álcool na companheira e riscou o fósforo. “O agressor socorreu a vítima depois, e entenderam que ele não teve intenção de matar. Fiquei triste. Ela sobreviveu [com queimaduras de segundo grau] porque o destino quis, não porque ele quis”, afirma a delegada – que dias depois foi interceptada na rua pelo ex-réu, “um músico seresteiro com cabelo sorvete” (raspado dos lados). “Queria saber dos objetos pessoais. Ele estava atrás de uma caixa de som que nós apreendemos.”

Desafinado

Na cidade, o machismo dá o tom. “Aqui, os homens têm mulher dentro de casa e namorada para passear na praça”, diz Mahenalva. Enquanto a delegacia feminina funcionava, eram só ela e uma escrivã na equipe. Ana Suellen de Araújo, 30 anos, está a seu lado, de roupa floral e bijuteria dourada. Por ora trabalha no DP “comum”, entre vários homens. Recebe algumas “gatas pingadas” dispostas a denunciar seus agressores. “As mulheres não se sentem bem lá”, diz.

Criada em 2002, a delegacia especializada virou um canteiro de obras, para se adequar ao Pro Paz Mulher, programa estadual de proteção. A previsão era que ficasse pronta em abril – agora, a promessa é em agosto.

O mestre de obras Juscelino Silva, 43 anos, está com um boné da Caixa Econômica Federal e camisa com estampa de ondas californianas quando vê a reportagem da Tpm e abre um sorriso. Dentro de uma sala empoeirada, ainda sem piso nem tinta na parede, mostra a planta do espaço: além da sala da delegada, lá funcionarão, para mulheres e seus filhos, serviços de perícia criminal, assistência social, psicologia, ginecologia, pediatria e brinquedoteca. Os muros que cercam o endereço dobrarão de altura: 2,3 metros, para garantir a privacidade de quem denuncia.

Juscelino diz que às segundas-feiras elas fazem tudo sempre igual: dirigem-se à delegacia para dar queixa, sem saber da reforma. “Vêm umas cinco ou seis. Depois das ‘festas’, sabe? É só olho roxo, tapão”, diz, rindo. E completa contando não entender por que elas muitas vezes voltam para o agressor. “É o mistério da cabeça da mulher que a gente não entende.”

Um operário arrisca explicar por que homens estão “com o capeta” no fim de semana. Nos botecos e baladas de Paragominas, a cachaça é a má ideia. Os drinques mais populares são caipirinha nevada – pinga, limão e gelo no liquidicador – e capeta – mistura de todas as bebidas do bar, mais leite condensado e morango (o toque final é uma borrifada de uísque com um daqueles frascos de fertilizante).

Tpm foi a uma das famosas aparelhagens paraenses, festas em que a cabine do DJ lembra uma grande nave espacial, estilo Planeta Xuxa. Meninos e meninas dançam até o chão versões tecnobrega de Naldo (“Vodka ou água de coco”) e MC Federado e Os Leleks (“Aaaah, lelek lek lek”). Nem na casa de shows nem no bordel Galega’s, que a reportagem também visitou, os homens pareciam avançar o sinal de forma particularmente bruta. “Só encontra perigo quem busca perigo”, diz uma loura de olhar desconfiado no Galega’s. Nas festas, alguns “agroboys” às vezes puxam as meninas pelo rosto, explicou uma babá de 15 anos, que cuidava de um bebê no coreto da pracinha. “Mas eles não insistem desde que você diga ‘não’ com firmeza”, completou.

Na média

Paragominas, em tantas maneiras, é como uma cidade média qualquer. Relativamente nova, nasceu no ano de 1965. Seu nome é uma abreviação de Pará, Goiás (de onde vieram os primeiros colonos) e Minas Gerais (origem do fundador do município). Tem uma praça no centro com uma igreja católica e várias concorrentes evangélicas ao redor. Sem ônibus e com poucos carros circulando, o transporte é basicamente mototáxi, bicicleta e carroça. O 3G funciona perfeitamente. A mesma barrinha de cereal light da vendinha natureba da metrópole está na gôndola do mercado. Grifes como O Boticário e Carmen Steffens têm filiais lá, ao lado de comércios locais como a butique Patricinha, a frutaria Deus Proverá e o Tudo É R$ 10 (o novo R$ 1,99). Nada fora do padrão.

O sentimento, de uns anos para cá, é de que as coisas vêm melhorando. O município, que já foi um faroeste caboclo cheio de pistoleiros, diz ter praticamente zerado o analfabetismo em adultos. Desde 2004, a prefeitura estima que 8.500 pessoas aprenderam a ler e a escrever com o projeto Alfa Paragominas. Em 2011, uma série de ações ambientais rendeu à ex-capital do desmatamento no Pará o prêmio Chico Mendes. O prefeito, Paulo Pombo Tocantins (PSDB), sustenta que “a história de Paragominas começou a mudar” quando a sociedade abraçou o Pacto pelo Desmatamento Zero, há cinco anos. Em um ano, segundo ele, a depredação caiu 90%. “Desse mato”, resume uma moradora, “deixou de sair só cachorro”.

Qual é, então, o ponto fora da curva que inflaciona os índices de violência contra a mulher em Paragominas?

A secretária municipal de Assistência Social, Dyjane Amaral, 42 anos e fala serelepe, tem um palpite. “Há uma cultura muito ruim para a mulher, que se acha submissa no Pará. Sabe aquela história de ‘não sei por que tô batendo, mas ela sabe por que tá apanhando?’.” Ela me busca no hotel e dirige 200 metros até uma padaria, onde toma café com duas colheres de açúcar, devora uma fatia de pizza de calabresa e digere a história da cirurgiã-geral Viviane Marins.

Negra “bonitona e risonha”, Viviane veio do Rio para trabalhar no Hospital Municipal de Paragominas e se apaixonar. Trocou o marido carioca por um técnico de enfermagem “cheio da bossa”, como define a amiga Dyjane. Morreu em 2010, com um tiro na nuca.

O caso ainda está sendo julgado no Pará: Francisco Charles é acusado de matar a mulher na frente do filho de quase 3 anos. Ela teria planos de se separar, e ele estaria de olho no seguro de vida de quase R$ 800 mil, segundo a acusação. A defesa sustenta que Viviane foi morta em uma emboscada. O casal teria estacionado numa rodovia para ajudar uma mulher – que anunciara o assalto. “Ela nunca teria parado”, desacredita Dyjane. “Sempre me dizia assim: ‘Se você vir Jesus Cristo na estrada, atropela ele. Aí chega na primeira barreira policial e diz: ‘Ó, acabei de passar por cima de Jesus’. Morria de medo de ser assaltada.”

Para a secretária, nem santo de casa faz milagre. “Temos uma assistente social que morre de medo do marido. Ele chegou a ser preso depois de dizer que a mataria a facadas. Mas ela disse à polícia que se enganou, que foi ela quem pôs faca sobre o sofá, para cortar um charque”, conta.

 

"Se nós, mulheres, somos fisicamente inferiores, precisamos ter proteção maior do Estado" Mahenalva Helena Furtado, delegada

 

Ledo engano

Antonia Leonice também “se enganou” algumas vezes antes de o pior acontecer. Aos 42 anos, casada de novo (“com um anjo”), não faz questão de ser tratada como ALPJ. “Não posso dizer que sou totalmente feliz. Mas o que me faz viver é pensar: quantas Antonias morreram? Quero contar essa história.”

Conversamos na beira do rio Guamá, em Belém, onde ela hoje mora. De bermuda jeans e regata de oncinha, unhas vermelhas nos pés (sobre salto plataforma) e nas mãos (cheias de anéis), cabelo preso 
por uma chuquinha roxa, ela é linda: depois de quatro plásticas no rosto, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), as marcas do facão são quase imperceptíveis. Como vários dentes caíram no ataque, hoje ela usa prótese – a arcada inferior tem apliques de metal, que lembram um aparelho e que ela acha “bonitinho”. Na coxa atingida, ela tatuou uma rosa por cima. Ainda carrega as marcas no ombro e na nádega direita. A única ferida aberta é o afastamento da filha adotiva, que não quis mais morar com ela, assustada com o episódio.

Leonice traz no colo Stefany, 3 anos, filha de sua única filha de sangue. É a primeira vez que a neta, segurando uma toalhinha de mão com a estampa da Barbie, vai ouvir a história da avó. E Leonice conta os detalhes com desembaraço. De como tantas vezes ele, já após a separação, “fazia um auê e ficava escondido fora de casa” esperando para atacá-la – até que amanhecia, batia na porta, e
Leonice lhe servia o café da manhã. Ou do dia em que quase a atropelou com uma bicicleta. Ou de como não sentiu dor na noite do crime. “Fiquei lesa, abestada.” Até que ela desaba e chora ao lembrar de como foi recebida pelo médico: “Ô, minha filha, você tá muito feia...”. A neta chora também e usa uma picada de formiga como desculpa. A avó dá beijinho e diz: “Já vai passar”.

O romance com Edinaldo nunca foi arrebatador. “Era aquele namoro em que o cabra ia para a casa dormir e acabava ficando.” Foram apresentados por uma amiga, e nos primeiros meses não deu para sacar que ele gostava de usar “pó branco no nariz” (ela não sabe afirmar se era cocaína). Leonice diz que foi 11 vezes à delegacia. Que, em algumas delas, os policiais não a levavam a sério. “‘Não bateu, não tem marca’, falavam.” Que, numa outra ocasião, ninguém a atendeu porque era hora do almoço.

Edinaldo fugiu da cadeia e está foragido. Leonice ficou sabendo pela TV. “Sou leiga, não entendo de leis, mas acho que deveriam ter me avisado.” Ela, que já sonhou em narrar sua saga no Brasil urgente,programa policial de José Luiz Datena, na Band, diz saber onde ele atualmente mora e trabalha, em Paragominas. Mas não quer ser refém do medo. Antonia Leonice Pereira Jacxes quer voltar para a academia e ficar ainda mais bonita. O primeiro passo é atravessar um lamaçal perto do rio. Segura a netinha pela mão e vai. “Nós vence tudo, né, Stefany? Vamos passar por essa laminha?”

*Colaboraram: Carol Sganzerla e Gabriela Sá Pessoa

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