O malabarismo da mulher moderna

por Lygia da Veiga Pereira

Me sinto como aquele chinês do circo, que equilibra pratinhos girando em cima de umas varetas, correndo de um prato para outro para que eles não caiam, fazendo tudo às pressas

Imagino que todas já tenhamos nos dado conta da grade armadilha que foi o movimento feminista dos anos 1960/1970, que deu à mulher condições de “igualdade” aos homens, e hoje podemos ser super profissionais.  Só esqueceram que, entre um MBA e um prêmio Nobel, teríamos que continuar cuidando dos filhos, da casa, do corpo, do marido, e por aí vai.  É bacana sim termos nossa própria identidade, podermos exercer todo o nosso potencial produtivo, mas meu Deus, como cansa...

Vejam por exemplo as 48 horas que vivi semana passada: em Agosto eu havia sido convidada a dar a aula de abertura do Primeiro Workshop de Genética Molecular da Paraíba, em Campina Grande.  Apesar da distância, e de nesse ano eu já ter ido ao Japão e à Índia a trabalho, achei importante participar, disseminar o conhecimento pelo Nordeste, entusiasmar potenciais novos cientistas a seguir essa carreira – topei.

Na semana passada o dia chegou– que começou às 2 da manhã, com minha filha caçula me acordando porque tinha feito xixi na cama.  Levanto, dou banho, seco e visto ela, que vem dormir comigo – quer dizer, ela dorme e eu fico insone umas 2 horas até pegar no sono de novo.  Às 7 da manhã acordamos todas, levo as filhas na escola, e parto para Guarulhos, onde pego o primeiro voo a caminho de Campina Grande, com troca de avião em Salvador – quando aproveito para ligar para o laboratório para saber notícias de algumas células que estavam crescendo, e para casa para dar instruções sobre as atividades da tarde das meninas.  Chego finalmente no hotel às 15:00, sem almoço. Como alguma coisa rápida com colegas cientistas, e quando começam a falar sobre as agruras da carreira acadêmica, eu peço licença e vou descansar.

Levanto às 18:00, 18:30 no lobby, o evento começa às 19:00 em uma das Faculdades locais.  Minha aula vai das 19:30 às 20:30, palmas, perguntas (adoro quando fazem perguntas), agradecimentos, fotos, mais perguntas, alunos felizes, finalmente entenderam as células tronco, ou quase.  Os anfitriões muito gentilmente me convidam para jantar, e partimos em vários carros rumo ao restaurante com nome italiano.  O motorista do meu carro se perde, e 20 minutos depois eu aciono o Google maps do iPhone e conseguimos chegar na tratoria – que servia também sushi... e churrasco...  Sento à mesa de 20 pessoas, um mega ar-condicionado nas costas, 22:00, com a perspectiva de acordar à 1:30 da manhã para começar minha jornada de volta à casa.  Sim, eu preferi voltar de madrugada a dormir em Campina Grande e só chegar em casa no dia seguinte à noite...

Tomo coragem, e da forma mais simpática possível declaro que estou exausta e que quero pegar um taxi para voltar para o hotel sem jantar.  Um dos anfitriões imediatamente se candidata a me levar, também doido para escapar daquele jantar de tantas etnias.  Chego no hotel às 22:40, pergunto se posso pedir algo no quarto – não só não posso, como o restaurante fechou às 22:30.  Janto batatinhas ruffles e uma coca zero do frigobar.  Durmo de roupa.

Levanto à 1:30, e pego um taxi até João Pessoa (voo de Campina Grande só às 14:00).  Uma hora depois, no aeroporto, uma grata surpresa: um Bob´s!  Como boa carioca, para compensar a falta do jantar, peço um milkshake de ovomaltine duplo – quase uma mamadeira.  Depois de escala em Salvador, chego em Guarulhos às 9:00.  E em casa às 10:40 - acidente na Marginal...

Café da manhã correndo, troco de roupa e voo para a missa de 7º dia do pai de uma amiga-irmã que era às 10:00 – ainda pego a família na sacristia, abraço a amiga, lembro do meu pai, me emociono.  Sigo para a USP, como um salgado na lanchonete, subo para o laboratório, olho as células, tiro dúvidas dos alunos, assino cinco documentos para a compra de um reagente que só vai chegar daqui a 60 dias, respondo emails.  Chega um pesquisador de Santa Catarina que vai dar o seminário do Departamento – sou da comissão organizadora e devo ciceroneá-lo.  Consigo passar essa bola para um aluno de doutorado, cujo projeto interessa ao colega pesquisador – ufa!  Às 14:00 levo o palestrante até o anfiteatro, me desculpo por não poder ficar para assistir a aula, ainda tento pegar os primeiros slides já que o tema, “Genética do comportamento”, me interessa muito, mas tenho outro compromisso já às 14:30.  Volto correndo para o laboratório.

Tenho que terminar um projeto de pesquisa para o CNPq (último dia), e chega alguém para tirar uma foto minha para uma matéria de fim de ano de uma das revistas semanais.  Trabalho no projeto enquanto o fotógrafo escolhe o melhor local para a foto – no escritório, no laboratório, em pé, sentada, séria, sorrindo, de frente de lado.  Minha filha mais velha liga – a que horas você chega? Preciso de sua ajuda com o projeto da feira de ciências!  Dou um basta no fotógrafo, submeto o projeto ao CNPq, e saio correndo para casa.

Chego às 16:30, e trabalho com a mais velha e sua amiga no projeto, explicando como fraldas absorvem líquido, graças a um polímero, e descubro porque as Pampers são melhores  – são cheias do tal polímero. A filha menor fica carente e resolve pedir ajuda ao mesmo tempo com seu dever de casa, e a malabarista se equilibra entre a tabuada de 3 e os polímeros.

Às 18:30 consigo me deitar, mas em seguida chega o marido anunciando que temos um jantar de aniversário da cunhada às 20:30.  E meu cabelo está um horror.  E me dou conta de que vou sair nas fotos da tal revista com esse cabelo desgrenhado - saco.  Chuveiro, escova home-made (bem digna, mas com uma validade curta – suficiente para a noite), maquiagem, vestidinho, e vamos para o jantar.  Cunhada simpática, sobrinhos queridos, uma tacinha de champagne, jantar, mais papo, e às 23:00 partimos... Para outro aniversário, festa de dança!  Encontro amigos queridos, outros amigos muito queridos, música boa – meus combustíveis!  Vamos para a pista de dança, me divirto, muito!  O marido acha graça, não acredita que eu ainda esteja de pé.

De volta para casa, às 1:30, completo as 48 horas de “La Mom”.  E me questiono sobre essa voracidade, a necessidade de fazer tudo, não abrir mão de nada, e o preço que pagamos por isso.  Me sinto como aquele chinês do circo, que equilibra pratinhos girando em cima de umas varetas, correndo de um prato para outro para que eles não caiam, fazendo tudo às pressas.  E me dou conta de que deixei um pratinho cair: não mandei minha coluna para a TPM...  

 

*Lygia da Veiga Pereira trocou Ipanema pela Universidade de São Paulo. É professora Titular de Genética Humana e chefe do Laboratório Nacional de Células Tronco Embrionárias da USP e referência nacional em pesquisas com células tronco. Escreve às quintas na Tpm e também nohttp://leiaasmeninas.com.br/

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