A distância entre pais e filhos é muitas vezes insolúvel
Um filme e uma visita à minha antiga casa de praia me fizeram perceber o quanto a distância entre pais e filhos é muitas vezes insolúvel
Quando vim ao mundo, em novembro de 1975, minha família já tinha ficha corrida. Pai, mãe, irmãos de 12, 11 e 9 anos de idade, avós, primos, história. O Natal já estava pronto e os álbuns ocupavam o respeitoso espaço de uma estante inteira. Já havia tido a época de Petrópolis e Cabo Frio, do Dodge Dart e do Landau, do pastor-alemão Ted e da husky Laica. Antes da casa que nasci, no Jardim Botânico, várias outras compuseram o cenário das fotos que olhava com inveja, como quem não se conforma em ter chegado tão depois.
Mas meu nascimento coincidiu com a compra da ilha de Angra dos Reis, e eu tinha certeza que nada poderia ser tão especial quanto aquela água clara, cujo reflexo exibia o movimento do vento nas amendoeiras imensas que rodeavam a areia, numa valsa que nunca esqueci. Nossa casa de praia era realmente profissional, e o custo disso é que nunca consegui frequentar as praias de cidade grande, já que num lugar muito íntimo associei areia a silêncio, mar a acolhimento.
Amor de pai
Meus primeiros verões foram repletos de xereletes e anzóis, ouriços e arraias. Com 6 anos sabia o nome de tudo que é peixe, e era uma exímia pescadora de lulas. Fazíamos verdadeiras expedições marítimas, e, na ponta do barco, comandando as pescarias e expedições, estava meu pai, um sujeito altamente controverso, mas que nasceu pra comandar aquela casa.
Éramos quatro irmãos, e, como sempre viajávamos cada um com no mínimo dois amigos, tinha-se – por baixo – 12 crianças ávidas por encantamento.
E essa era sua especialidade. Encantar. Fez um tobogã de 20 metros que caía no mar. Organizava campeonatos de apneia. Mergulhava com extrema categoria. Jogava pôquer e oito e meio. Tênis de sapato. Gamão, xadrez, forca e o que mais aparecesse. Era o incrível capitão Léo.
Tinha talento para a infância, talvez porque nunca a tenha abandonado completamente. E hoje, aos 79 anos, como um menino turrão, organiza sua morte, frisando com veemência que não quer velório nem anúncio em jornal. Eu sempre acho que estou pronta pra me despedir do meu pai. E talvez esteja mesmo, porque é o que faço há anos, quando me dei conta que crescer era desagradá-lo, que pra receber tanto amor era preciso ser criança.
Fui ver o lindíssimo Amor, do cineasta austríaco Michael Haneke, e percebi o quanto a distância entre pais e filhos é muitas vezes insolúvel. A proximidade da morte e a fragilidade do corpo são fardos difíceis de ser divididos, e quase tudo na vida é cumplicidade.
Mas fiquei pensando que, assim como se ama um ex-marido, com gratidão por um tempo feliz, pode-se também amar os pais. Eu amei muito o meu pai. Sei que também fui muito amada. E tudo bem ele nunca mais ter sido tão legal.
Essa semana eu visitei a casa de Angra, que foi vendida cinco anos atrás e está fechada desde então, com meu filho de 9 anos. Ele ficou impressionado com a beleza do lugar e me perguntou entusiasmado: “Mamãe, você deve ter sido muito feliz aqui, não é?”.
Respondi que sim. Porque o que eu queria lá atrás quando invejava meus irmãos mais velhos era memória e pertencimento. Eu queria fazer parte.
Isso eu já tenho. De uma casa e de um pai. De uma água e de uns irmãos. De um tempo em que achava que família era sempre doce.
Mas eis que meu filho sorri o sorriso das descobertas e me mostra uma estrela no fundo do mar, que ele tenta tocar mas “é fundo e o fôlego acaba antes”. Então eu me emociono e tenho certeza que a melhor parte é mesmo agora, a infância do filho e não a minha, e tudo deveria ter sido exatamente como foi: o gosto do mar na boca, a decadência financeira, a consciência do tempo e o perdão.
Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia Justa, no canal GNT. Seu e-mail:ribeirom@globo.com