’’Somos todos a transexual pregada na cruz, somos todos divinos e feitos de uma mesma substância estrelar, ainda que religiões corporativas tentem nos separar e nos jogar uns contra os outros’’
A imagem da transexual crucificada na Parada LGBT de São Paulo cumpriu uma importante missão: perturbar. Em geral, quando a arte consegue causar desconforto é porque alcançou um objetivo maior, que é o de nos tirar daquele lugar seguro e obrigar a pensar.
Claro que os conservadores chiarão como sabem chiar, elevando o preconceito a níveis ainda mais altos, e clamando por respeito à imagem do Cristo crucificado, como se a alegoria fosse exclusividade sagrada dos que dizem ter fé, e comungam e cumprem com a obrigação do dízimo; Cristo crucificado é propriedade deles, e de ninguém mais.
A grande blasfêmia hoje, se entendermos por blasfêmia o desrespeito pelo sagrado, é o fato de que nem toda a vida é considerada, e falo aqui da vida de negros e de mulheres e de gays e de trans, chegando a querer incluir a vida animal e vegetal que todos os dias, em nome do que chamam de progresso, é também desrespeitada nesse planeta maluco em que vivemos.
A grande blasfêmia sempre foi fechar os olhos para as minorias que sofrem por preconceito e são vítimas de crimes de ódios.
A imagem de um Cristo crucificado usada para proteger homens brancos e, a fim de manter cada um em seu lugar, obrigar o oprimido a se contentar com sua condição porque ela o libertará na outra vida, desde que nessa cumpra-se com o dízimo, é a grande blasfêmia, o grande sarcasmo, o que de fato deveria ser investigado e depois punido.
A imagem de Cristo na cruz deveria remeter à vida eterna em cada um de nós, à união com o divino, à certeza de que somos, a despeito de aparências, rigorosamente iguais e, portanto, temos os mesmos direitos.
Uma imagem que, se assimilada sagradamente, seria capaz de apontar para o universo dentro de cada um de nós, um universo representado pela figura do criador/criadora a quem estamos indo encontrar, e pela aceitação da dor, essa que é comum a todos os seres vivos.
O entendimento de que o infinito está ao alcance, e será conquistador através da ruptura, do renascimento e da beleza, e não através do pecado, conceito que as religiões organizadas em corporações se esquecem de lembrar que não existe.
A cruz é a dualidade da busca pelo divino e do divino vindo ao nosso resgate. “Se queremos a ressurreição precisamos da crucificação”, disse o filósofo Joseph Campbell. Para ele, a fim de entendermos a crucificação, devemos esquecer a calamidade do evento, essa na qual as religiões corporativas focam a fim de sair gritando “não mexam com essa imagem porque ela é propriedade dos que se permitem doutrinar".
Apenas se esquecem de nos dizer que toda a doutrinação tem como finalidade aprisionar, e o aprisionamento se opõe à única busca realmente sagrada: a da liberdade.
“Através da crucificação somos libertados e passamos a ser capazes de nascer para a ressurreição. Isso não tem nada de calamidade”, diz Campbell.
A crucificação entendida como gesto para acalmar o Deus criador através do sacrifício de seu filho, além de não fazer nenhum sentido para qualquer um que passou apenas um dia sobre a Terra e sabe do que se trata a experiência humana, é cruel porque faz nascer um Deus maligno e punitivo, mas incrivelmente útil para religiões corporativas porque apenas um Deus maligno seria capaz de separar a humanidade em cor e gênero e renda e crença.
Saber disso é também entender que Jesus, ao dizer "ame o próximo como a si mesmo”, estava dizendo “ame o próximo porque é tu mesmo”.
Então, a imagem de uma transexual crucificada é não apenas adequada como necessária.
No lugar da transexual poderiam também estar a mãe solteira que mora na comunidade e trabalha para sustentar os filhos, a mulher que todos os dias é vítima de violência e abuso sexual, o negro espancado pelo policial, a criança escravizada por corporações, o índio separado de sua terra.
Somos todos a transexual pregada na cruz, somos todos divinos e feitos de uma mesma substância estrelar, ainda que religiões corporativas tentem nos separar e nos jogar uns contra os outros.
A despeito do que chiem e bradem os conservadores, a imagem do Cristo na cruz é patrimônio dos que sofrem e amam e desejam ser libertados, uma imagem que pode e deve ser usada por todos nós para que o amor crístico seja finalmente assimilado.