Admiti que ainda serei muitas, mas nunca serei todas
Admiti que ainda serei muitas, mas nunca serei todas e, principalmente, jamais serei outra que não eu
De repente, sem querer, eu me disse: agora é pra valer. Estava me referindo à vida, à vida adulta, aquela para a qual tenho passado os últimos 47 anos me preparando. Mesmo com duas filhas, um livro escrito e uma árvore plantada (não me lembro bem, devo ter plantado alguma...), parecia que nem tinha começado ainda. Sempre pensei que chegaria o dia em que deixaria de sentir-me intimidada diante daqueles que admiro, em que me consideraria uma mãe suficientemente boa e uma mulher de verdade, em que saberia administrar o dinheiro que ganho como se fosse meu. Isso ainda não aconteceu, mas outra coisa sim: comecei a olhar para o taxímetro e ver o quanto de vida já gastei.
Desculpem o aparente negativismo, é só pra comentar que a gente passa a vida se preparando para a próxima etapa, para a qual só estamos prontos depois que ela já acabou. Por exemplo, agora estou aprendendo como é ser mãe de gente grande, trabalhar ficando mais cansada do que antes e dedicar tempo para escrever. A vida é espiralada, quando um circuito termina, já estamos empreendendo a íngreme escalada do próximo. Portanto, quando digo que agora é pra valer, não é porque acho que estou pronta para alguma coisa. Apenas sinto que é hora de renegociar com os ideais.
Cada vez que começo a lamúria do “estou ficando velha”, uma das minhas filhas tem o hábito de cortar a cantilena com um sarcástico: “Então deita e morre”. Tá, é cruel, mas efetivo. Na mesma hora eu paro e percebo que, se começar com isso antes dos 50, aos 60 vou estar distribuindo os livros entre os herdeiros (já que os CDs não vão servir pra mais nada). Nesse ritmo, aos 70 talvez esteja escolhendo a casa geriátrica e aos 80 já possa iniciar meu próprio velório.
A conquista de uma certa leveza
Essa sensação de que o período de estagiária estava no fim deveu-se a algo diferente: admiti que ainda serei muitas, mas nunca serei todas e, principalmente, jamais serei outra que não eu. É difícil andar pela vida presa dentro dessa criatura complicada, insuficiente e imatura que eu sou, mas é isso... Os psicanalistas chamam essa experiência de “castração”e já tiveram que ouvir poucas e boas das feministas por usar essa metáfora peniana para designar a assumida insuficiência. Ser “castrado”, nesse sentido, seria equivalente a admitir-se irremediavelmente incompleto.
Em defesa do dr. Freud (que admitia não entender bem as mulheres), devo dizer que compreender a própria castração é um dilema tanto para os homens quanto para as mulheres – e é uma das conquistas de uma boa análise. Trata-se de uma conformidade consigo mesma, mas que não equivale a resignar-se à mediocridade ou à tristeza. Pelo contrário, há o ganho da conquista de uma certa leveza. Quando a gente descobre que é pra valer, é porque já é capaz de perdoar-se pelos ideais inatingíveis... e já não se corta os pulsos com os cacos dos sonhos partidos.