por Milly Lacombe
Tpm #122

Uma das únicas capitãs de veleiro oceânico do mundo, ela ainda sonha grande

Há 32 anos, ao deixar São Paulo para trás, ela não sabia que seria para sempre, muito menos que viveria pelo mundo de porto em porto. Hoje uma das únicas capitãs de veleiro oceânico do mundo, Nadia Megonn ainda tem um grande sonho

Ela tinha 18 anos no dia em que um episódio dramático mudou sua vida. Estava na casa em que morava com os pais no então pouco habitado bairro paulistano de Alto de Pinheiros quando a campainha tocou e a empregada foi atender. Os três assaltantes entraram rendendo a mulher e exigiram ser levados até a dona da casa. Num ímpeto de coragem, ela os levou até os dois labradores treinados. Não houve tempo para mais nada: pularam na jugular do primeiro, que morreu em minutos. Os outros dois, apavorados, romperam dali, deixando o corpo para trás. Nadia estava no quarto e viu tudo. A decisão de se mudar para a propriedade de praia da família, em Ilhabela, litoral norte de São Paulo, foi rápida. Tinha acabado de concluir o colegial no Rainha da Paz e queria mesmo dar um tempo antes da faculdade. Filha única, teve que convencer os pais – ele, procurador do estado, ela, administradora. Disse que voltaria logo.

Nadia vai me receber na saída da balsa, em seu Suzukinho azul. Cabelos longos e morenos, usa polo de mangas compridas, calça larga de moletom e Havaianas. Não a conheço, mas fica fácil identificá-la. É uma risonha e bronzeada garota de praia de 50 anos. É uma tarde de verão que nunca terminou. “Sou uma skipper”, diz. Na tradução, é a capitã, a mais alta patente de um barco. Começa a me contar como aconteceu. Com 18 anos, foi morar na ilha. Do pai, ganhou um veleirinho que passou a usar diariamente. A partir daí, uma sucessão de bons ventos. “Foram quase três anos de liberdade, indo e vindo por esse litoral.” Durante esses anos, aprendeu tudo a respeito da arte de velejar e começou a competir ferozmente; onde havia uma prova, lá estava ela – foi duas vezes vice-campeã paulista e venceu dezenas de regatas. Quando decidiu voltar a São Paulo para retomar os estudos, o universo veio com um teste. “Soube de um velejador que estava procurando jovens que topassem ir a Salvador com ele. Queria companhia para os filhos.” Apresentada por um marinheiro do Iate Clube, Nadia rapidamente se enturmou com a filha mais velha. “Meus pais fizeram de tudo para me convencer a não ir, mas meu argumento era: "Vestibular tem todo ano. Ida a Salvador de veleiro, não’.” Sob protestos, foi. “No começo da década de 80, navegar era roots”, explica. “Não havia GPS, era cálculo. Tínhamos que jogar um pesinho no mar para medir a distância da costa.” Foi um aprendizado. “Hoje, com o GPS, qualquer um pode ir a qualquer lugar num veleiro. De verdade, não tem nada mais fácil do que vir da Europa para cá empurrada pelo vento”, tenta me convencer.

Prioridades
Voltou de Salvador com a certeza do que queria da vida. Mas, antes, havia o vestibular e a faculdade. Entrou na PUC de Campinas, educação física, e, assim que o curso chegou ao fim, voltou à ilha para dar aula em uma escola pública e começar a se sustentar. Em vez de futebol e handebol, seus alunos nadavam, escalavam e faziam trilhas. “Dava aula para os filhos dos caseiros. Hoje, um é o delegado, outro é skipper”, e ela ainda cruza com muitos pela ilha de 28 mil habitantes. Nova fonte de renda veio quando o pai ofereceu a ela quatro vacas leiteiras. 

Como a propriedade da família é grande, ficou com a função de administrar a terra. “Comecei a vender leite para a elite local. Um litro, US$ 1. Nunca ganhei tanto.” Enquanto isso, velejava e competia pela região. Um dia, estava no centrinho quando viu passar um alemão cheio de estilo. Descobriu que era um engenheiro elétrico de navios que morava seis meses no mar e seis meses em Ilhabela. “Era o pai da minha filha passando”, conta, rindo. O relacionamento não demorou para engrenar. “Vivíamos namorando pela ilha, era uma vida muito livre.” Decidiram morar juntos e, em 1995, nasceu Ananda.

O parto foi em casa, como queria Nadia, assistido pela pediatra, pelos pais e pelo companheiro. Na hora de cortar o cordão, a tesoura foi oferecida ao pai de Nadia. “Olha lá, Rubão”, disse a pediatra. “Quem corta cria.” Era quase uma profecia. “Pouco tempo depois, o relacionamento acabou e ele foi morar em Ibiza. Nunca mais o vi”, conta. Como no mar, a tempestade foi seguida de ventos a favor. “No dia seguinte, arrumei um emprego na BL3, a escola de vela do Pera [Paulo Rodrigues], um grande amigo.

Precisava tirar minha cabeça daquele relacionamento.” Seguiram-se viagens pelos mares para competir em regatas: Fernando de Noronha, Rio de Janeiro, Nordeste, além das aulas que começou a dar de wind e de veleiros pequenos – Optimistic e Laser. Enquanto fazia isso, os pais ficavam com Ananda – na ilha ou em São Paulo. “Não sei como teria conseguido criá-la sem eles. Estavam sempre dispostos e, mais do que isso, faziam questão de dar a ela a educação que eu queria. Diziam: ‘Não concordamos, mas vamos fazer como você quer’.”

Com 14 anos, Ananda começou a se encontrar com a mãe na Europa, onde já passaram alguns verões velejando. “Nosso relacionamento sempre foi intenso. É minha melhor amiga.” Quando pergunto a Ananda como é ter uma mãe tão diferente, ela é direta: “Apenas a profissão dela é diferente. Como mãe ela é simplesmente minha mamãe”. No começo deste ano, Ananda foi morar em São Paulo, para fazer comunicação em multimeios na PUC. “Vai ser duro”, diz a mãe. “Ela não sabe o que é trânsito, correria, cresceu neste paraíso aqui.”

Em 1996, logo depois de entrar para a BL3, comprou um veleiro de 28 pés com Pera, que foi o primeiro veleiro de oceano a ser usado para aulas no Brasil. “Pera foi meu grande mestre.” Depois de alguns anos, com o crescimento econômico no Brasil, veleiros maiores aportaram no Iate Clube de Ilhabela e Nadia passou a ser solicitada para levar e buscar barcos pelo mundo. “Era alguém que precisava que o barco fosse levado ao Caribe para as férias, outro cujo barco havia ficado pronto na França e precisava ser trazido para a ilha...” Pintava um novo ramo. A primeira travessia foi a mais complicada. Em 1999, com dois marinheiros, teve que levar um catamarã de 54 pés (207 metros quadrados só de velas) para Portugal. Como o barco demorou para ficar pronto, acabou saindo em dezembro, a pior época. “É vento na cara daqui até lá. Foram 40 dias molhados e gelados, sem ver o céu. Aprendi a respeitar o meio, encostar e esperar passar.”

Logo, teve que optar entre as aulas na BL3 e as travessias. Escolheu as navegações mais longas, o que acabou atrapalhando a vida sentimental. “Não há quem aguente; é Salvador hoje, Seicheles amanhã, Caribe no Ano-novo. Meus relacionamentos terminam invariavelmente depois de uma longa travessia.” Pergunto se existe muito machismo no meio e ela diz que, entre skippers, sim. “Você está competindo por um trabalho em barcos grandes, caros. É uma enorme responsabilidade trazer um barco da Europa para cá que pode chegar a custar 3 milhões de euros. Tem que chegar intacto na mão do proprietário. E eu sou mulher, cuidadosa, não tenho essa coisa do macho de se provar para outros machos. Aprendi que a linha entre a coragem e a irresponsabilidade é muito fina, conheço skippers que morreram no mar.

 

“Sou mulher, não tenho essa coisa do macho de se provar para outros machos. A linha entre a coragem e a irresponsabilidade é muito fina”

 

Então, preparo o barco com cuidado, venho sem arriscar.” Pera faz eco: “O que ela tem que muitos skippers precisam é humildade. Alguns skippers, quando cruzam o oceano levando barcos, adquirem uma experiência ímpar e, com isso, se sobrepõem a qualquer mortal. Quem não é humilde acha que é o bom e, quando percebe, está encalhando o barco ou colidindo. Nadia não apenas se preparou para levar o barco como adquiriu conhecimento dos equipamentos, de como utilizá-los”.

Amor companheiro

Mulheres skippers ela só conhece duas, além dela. Como vantagem, cita os anos em que competiu. “Quando você compete, leva o barco ao limite, sabendo que à noite vai ter banho quente e boa comida no iate clube local. Aprende até onde pode duelar com o meio.” Tendo sido skipper do maior veleiro da América do Sul, a Atrevida, de 110 pés (33 metros), tem experiência de sobra, inclusive mecânica. “No meio do oceano, quebrou, tenho que arrumar.” Explica que nunca cruzou um oceano sozinha porque esse não é seu barato.
“Sei que conseguiria, mas não é esse o ponto. Meu negócio é conhecer praias paradisíacas bem acompanhada, seja dos proprietários, de um namorado ou de bons amigos.” Além disso, ainda faz a trilha sonora do barco. O que acaba criando outro talento: o de formar boas tripulações.

Numa travessia longa, de 40 dias e com o barco navegando 24 horas, é importante ter com quem revezar o comando em turnos. Em abril, trazendo um barco da França, montou seu time com a amiga francesa Catherine de Jenlis – que é chef de cozinha de veleiros e, como ela, vive no mar –, um amigo que é excelente músico e a fotógrafa Autumn Sonnichsen, que ilustra este perfil com fotos da viagem. “É importante que todos entendam a responsabilidade da jornada. Isso feito, é também importante que consigamos conviver.” Por que não, então, um fim de tarde com alguém tocando violão no deck, boa comida em um ponto qualquer do Atlântico? Catherine diz que Nadia é das mais experientes capitãs com quem já navegou. “Fizemos uma regata e duas travessias do Atlântico. Tem uma tremenda habilidade para manobrar o barco e unir a equipe.”

 

“O que ela tem que muitos skippers precisam é humildade. Quem não é humilde acha que é o bom e, quando percebe, está colidindo” Pera, amigo e skipper

 

Hoje, skipper renomada no Brasil e no exterior, Nadia é contratada para cuidar de dois veleiros oceânicos que ficam ancorados em Ilhabela, e está sempre esperando a próxima travessia. É como ganha a vida, com um salário que ela não revela, mas que garante bastar e sobrar para fazer o que gosta e se sentir livre. O que falta? “Encontrar um grande amor que tope pular no veleiro e dar a volta ao mundo comigo.”

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