Conheça a história da garota que abriu os caminhos do surf feminino no Brasil
No início dos anos 90, ela era alvo de olhares tortos por andar no Rio de Janeiro com a prancha embaixo do braço. Em seguida, conquistou respeito no surf e foi uma das primeiras no mundo a encarar ondas grandes. Em 2001, no mar gelado de Maresias, uma onda levou sua vida. Conheça a história de Deborah Farah, que abriu os caminhos do surf feminino no Brasil
Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, 30 de outubro de 2010. Pela quarta vez, a paraibana Diana Cristina se consagrava campeã do Circuito Petrobras de Surf Feminino, o Troféu Deborah Farah. Feito que, provavelmente, a surfista tida na história como a primeira campeã brasileira profissional e que leva o nome do campeonato nacional exclusivo feminino gostaria de ter alcançado. Em 2011, comemoram-se dez anos do torneio criado em homenagem à Deborah, que também carrega o feito de ser pioneira no tow-in (surf rebocado por um veículo a motor) no Havaí. Nenhuma brasileira pegava onda grande como Deborah. Só que o destino quis que a musa do surf, aos 27 anos, saísse de circuito.
Maresias, São Paulo, 19 de outubro de 2001. O céu nublado e as ondas de 1 metro convidavam só os mais chegados para o surf. “Era uma típica sexta-feira, só os amigos no mar”, descreve Felipe Braun. Com os pés na areia e a câmera em punho, ele não perdia uma manobra. Até avistar os braços erguidos de um amigo em sinal de socorro. Afastou a lente dos olhos e notou que a prancha era de Deborah. Ele correu. Mergulhou de tênis, celular e carteira nos bolsos. Encontrou-a desacordada, boiando na arrebentação. Foi aí que encaixou a cabeça da jovem em seu ombro e a levou para fora do mar. O que Felipe não sabia é que ficaria um ano sem entrar naquelas águas.
Ele deitou o corpo da amiga na areia, checou pulsação, diafragma. Não ouviu respiração. “Mas ela tinha pulso. Pouco, mas tinha”, recorda ele, experiente em salvamento – não havia salva-vidas no local. Felipe abriu então o short john de Deborah e iniciou a massagem cardíaca. “Ela deve ter engolido muita água, a barriga dela estava inchada. Mas voltou a respirar. Eu a entreguei com vida aos socorristas”, garante Felipe. Do pedido à chegada do resgate se passaram 15 minutos. “A ambulância era totalmente despreparada, não tinha balão de oxigênio nem velocidade para subir a serra de Maresias em direção a Boiçucanga. Eu, com um carro mil, cheguei antes ao hospital”, relata ele, na época com 24 anos.
Para. Volta a fita. Naquele dia, a temperatura da água do mar chamou a atenção de Alex Miranda. Tanto que estranhou o fato de a garota não ligar para o frio. “Eu estava me trocando atrás do carro e vendo a Deborah vestir um short john. Falei: ‘Você vai cair assim? A água está congelada’. Ela falou: ‘Na boa’. E saiu andando. Eu caí na água, não deu 10 minutos e vi ela pegando uma onda. No que caiu, não levantou mais. Deve ter sido essa onda”, lamenta o surfista, um dos últimos a vê-la a caminho do mar. Deborah tinha ido à praia sem a companhia do namorado, o big rider Sylvio Mancusi, o que não era de costume. Recém-operado de miopia, ele estava proibido de cair na água. Almoçaram juntos – torta de frango e açaí – e ele voltou para casa para se distrair no videogame. O jogo acabou quando recebeu uma ligação: “A Deborah sofreu um acidente”.
Sylvio mal enxergou o amigo Felipe e passou atropelando as portas da sala cirúrgica. Juntos, depararam com a pior cena de suas vidas. Deborah estava deitada na maca, sem vida. Felipe apagou. Sylvinho saiu atravessando portas de vidro e descontou a raiva destruindo seu carro, um Logus verde-água. “Até hoje discuto sobre o resultado da autópsia, se realmente foi uma pancada na cabeça. Ela tinha tanta experiência no surf... Discuto se não foi porque ela comeu muito antes de ir para o mar”, opina Felipe.
Guarujá, 12 de novembro de 2010. Nove anos depois de Sylvio sair desnorteado do hospital, é visível que o tempo não tratou de conformá-lo. Chora copiosamente à primeira pergunta, levando as mãos aos olhos azuis, já avermelhados pelas lágrimas que acompanham a conversa. Conta que, horas antes de se separar da namorada, eles tinham assinado a compra de um terreno na vizinha Paúba, onde construiriam uma casa e oficializariam o relacionamento. Coincidência? Então veja mais esta: a casa que fez questão de erguer naquele terreno foi vendida em 19 de outubro de 2010. “Acredito que tenha sido coisa dela”, solta Sylvio, deixando transparecer o incompreensível. “Talvez ele tenha sentido culpa por não ter ido. Eu nunca o culpei”, afirma a mãe da moça.
Denise Mitiko Farah, 51, filha de japoneses, nunca gostou do mar. Via o surf como um esporte perigoso. Mas acredita que “quando tem que acontecer, não adianta”. E segue amparada pelo discurso: “Deborah era uma pessoa especial, talvez por isso não tenha vivido muito tempo. Sinto falta dela, choro, mas pelo menos sei que não foi uma morte brutal”.
Deborah chegou em 25 de dezembro de 1973 como primogênita de Denise e Nelson Farah. Mistura de japonês com libanês. O nome foi escolhido pelo pai, que a presenteou com uma prancha de bodyboard aos 5 anos de idade. Ao contrário da mulher, para ele o dia não começava sem um mergulho. A preocupação surgiu quando viu a filha levando o surf a sério. Faz questão de dizer, mais de uma vez, que não era contra o esporte. Só que não via futuro profissional para a menina no Brasil.
Afinal, era graduada em marketing, com intercâmbio nos Estados Unidos, tinha inglês fluente e um emprego na IBM. “Só que o surf estava dentro dela. Um dia perguntei: ‘Você não fica preocupada com o futuro?’. Ela disse: ‘Papai, estou deixando a vida me levar’. Ela estava certa”, conclui.
No auge da adolescência, lá pelos 16 anos, Deborah pegou gosto pelo surf escondida da mãe. Nesse começo da década de 90, era o bodyboard que estava em alta. As irmãs Isabel e Mariana Nogueira e Glenda Kozlowski dominavam o esporte muito praticado pelas mulheres. Mas surfistas como Andrea Lopes, Brigitte Mayer e Aidil Cunha, inspirações para a menina, figuravam nas areias cariocas carregando pranchas tal qual os homens. “Muitas pessoas admiravam, mas outras olhavam torto, não valorizavam o surf feminino”, conta Aidil, uma das incentivadoras da amiga. “Ela tinha muita garra, se dedicava muito. Nunca vou esquecer quando disse: ‘Se tiver que me dedicar só ao surf, vou me dedicar. Quero fazer o que me faz feliz’”, revela.
No início, Deborah pedia ao então namorado que carregasse sua prancha até a beira do mar. “Tinha quem apontasse: ‘Olha só, mulher-macho’”, lembra Mario Marques, com quem ficou por sete anos. “Prometi a ela: ‘Vou fazer de tudo para você ser reconhecida e para reconhecerem o esporte que você ama’”, conta ele, na época com 29 anos. Mario estufa o peito ao dizer que transformou Deborah em musa do surf. Fala sobre o assunto sem tirar seu Ray-Ban, que não disfarça o olhar emocionado ao se lembrar daquele tempo. “Sempre quis transformá-la num símbolo da beleza do surf feminino, queria desmistificar a imagem da surfista mulher”, comenta.
Logo, a garota apareceu com roupas e adesivos na prancha de patrocinadores que viam nela um potencial publicitário. Bumbum Ipanema, Sexy Machine e Body Glove eram alguns deles. Começou então a participar dos campeonatos. Foi vice-campeã estadual amadora, em 1995, terceira no Circuito Carioca de 1997 e, no mesmo ano, entrou para a história do esporte como a primeira campeã brasileira de surf profissional.
Já com alguns anos de experiência, Deborah se tornou presença constante no Havaí, onde se aproximou de Sylvio Mancusi. Foi lá que se conheceram e onde a levou para surfar ondas grandes. A carioca foi a primeira brasileira e a segunda mulher no mundo a praticar a modalidade. Chegou a pegar ondas de 15 pés, o equivalente a 5 metros de altura. “Ela estava começando a se destacar numa época em que ninguém imaginava fazer isso”, conta Brigitte Mayer, 42 anos. “Além de ser uma grande surfista, era uma das mais bem preparadas fisicamente. Ela sempre teve consciência, fazia um trabalho corporal muito forte, a Deborah tinha essa preocupação. Só agora os surfistas estão vendo a importância da preparação física. Não é só chegar e pegar onda”, conta.
O pioneiro Rico de Souza, 58, acompanhou o crescimento da aluna no esporte e admirava a sua dedicação às ondas grandes. “Ela era incentivadora de outras meninas na escolinha de surf que eu coordeno e marcou muito uma geração. Era focada, educada. Por mais beleza que tivesse em relação às outras surfistas, isso não mudava nada, ela continuava humilde”, descreve.
A mãe de Deborah nunca concordou com essa postura da filha. Dona de personalidades díspares, Denise não entendia por que ela fazia tanto pelas outras surfistas, fossem iniciantes ou experientes. Deborah incentivava, doava pranchas, ia a programas de TV, deixava de pegar uma onda pelas outras. “Eu dizia: ‘Minha filha, por que você faz tanto? Quanto mais meninas tiver, mais competitivo será’. Ela não conseguia ver as outras meninas como rivais. Nunca foi egoísta. Já eu, se tiver que dar porrada para ganhar, não quero saber”, confessa a mãe. Para a amiga Aidil Cunha, essa bondade de Deborah esbarrava na ingenuidade. “Eu estava sempre defendendo-a. Um dia ela me ligou chorando porque o cobrador do ônibus não a deixou subir com a prancha”, exemplifica. “A Deborah era muito pura, chorava por coisas pequenas. Na verdade, ela era muito diferente das pessoas em geral. Depois que ela faleceu comecei a observar que as pessoas boas não ficam muito tempo aqui”, acredita.
Andrea Lopes, amiga e uma das principais adversárias na água, concorda com Aidil. “A Deborah era uma pessoa diferente de todo mundo. Não brigava, estava sempre sorrindo, não tinha tempo ruim.” Era para ela que recorria quando o assunto era cremes. A morena de cabelos negros era a mais vaidosa das
surfistas de sua geração, tanto que estampava na prancha um adesivo de coiffeur. “Quando a gente viajava, a Deborah já ia com as produções montadas na mala, vários nécessaires, era toda organizada, regrada com horários, alimentação, era um exemplo pra mim”, revela Patricia Sodré, 31 anos, uma de suas melhores amigas. Juntas, passavam temporadas no Havaí e na Costa Rica. Viajaram por quase todo o litoral brasileiro atrás das melhores ondas. “Só que, ao mesmo tempo, era bagunceira, muito palhaça, botava apelido em todo mundo. O dela era Farofa, uma mistura de farofeira com Farah. Eu morria de rir com ela”, conta Patricia, que passou um ano sonhando com a amiga depois que ela faleceu.
Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2002. Menos de um ano após o acidente, amigos e familiares da garota que marcou a história do surf brasileiro se uniam para o primeiro Troféu Deborah Farah, o Circuito Petrobras de Surf Feminino. A cada edição, mais atletas são reveladas, garantindo o futuro que Deborah desejou para o esporte. “Ela colaborou muito para a imagem bonita do surf. Era uma pessoa íntegra, então quis homenageá-la criando o primeiro circuito feminino nacional do mundo”, conta Laila Werneck, idealizadora do campeonato que integra das categorias de base (infantil e mirim) à profissional. “Acredito que ela mande energia para que sempre dê certo”, finaliza. Pelo que se nota no cenário do surf, é o que está acontecendo. A paranaense Bruna Schmitz, 20 anos, há dois integra a elite mundial. “É o circuito mais importante para as mulheres. Comecei na mirim e me profissionalizei graças aos resultados na categoria profissional”, reconhece. Silvana Lima, 26, natural do Ceará e revelada aos 15 anos no Circuito, foi três vezes vice no mundial. Diana Cristina, tetracampeã do Troféu, levou o primeiro lugar no Brasil Surf Pro de 2010, de olho no dia em que representará o país nos mundiais. Deborah Farah agradece.