Mulher no Volante

Tpm

por Bruna Bopp
Tpm #130

Narla Kely da Silva se destaca no comando de um caminhão de 8 metros de altura

Em meio a tantos homens, Narla Kely da Silva se destaca no comando de um caminhão de 8 metros de altura, transportando 240 toneladas de minério de ferro sob um sol de 40 graus

Ursos de pelúcia espalhados pelas prateleiras, colcha rosa e retratos de criança na parede. À primeira vista, arriscaria dizer que se trata do quarto de uma pré-adolescente – não fosse pelo fato de a menina que o habita dirigir, diariamente, um caminhão que transporta 240 toneladas.

É ela quem abre o portão rosa-choque da casa, em Parauapebas, a 700 quilômetros de Belém, no sul do Pará, para receber a reportagem da Tpm. Com 1,56 de altura e fala mansa, é difícil imaginá-la no comando de um veículo de 11 metros de comprimento, 7 de largura e 8 de altura – máquina que poderia facilmente estar no filme Transformers.

De vestido estampado e sandália de dedo, aos 28 anos Narla Kely de Souza Silva abre um sorriso sem jeito e denuncia logo a timidez. Chama a mãe para ajudá-la a responder às perguntas. “Minha mãe gosta de falar”, explica. E, quando o assunto é a filha, aí é que a cabeleireira Fátima de Souza se empolga mesmo. “Kely sempre foi dedicada. Me esforcei muito para que ela tivesse uma vida diferente da minha e conseguisse chegar aonde chegou”, conta.

Ela se refere ao emprego da filha como orientadora operacional da Vale no maior sítio de minério de ferro a céu aberto do mundo. A empresa, criada há 70 anos, é o sonho de muita gente por ali – especialmente pelos benefícios que oferece, como seguro-saúde e ajuda nos estudos – e se tornou ideia fixa para a cabeleireira.

Em 1998, Fátima deixou tudo para trás em São Luís, no Maranhão – inclusive uma casa com tudo dentro, onde morou com seu segundo marido –, e se mudou para Parauapebas, para ficar próxima da região de Carajás, a 25 quilômetros dali.

“Era isso ou teria que ser vendedora, doméstica ou trabalhar em salão de beleza”, esclarece Narla. Por insistência da mãe, em 2004 a menina concorreu com mais de mil pessoas a uma das 96 vagas como trainee da área de manutenção. Foram quatro provas de conhecimentos gerais e uma entrevista. “No dia em que vimos o meu nome na lista de aprovados, demos muita risada. Ficamos tão felizes que deu até uma tristeza de cansaço de tanto rir”, lembra. E completa: “Fiquei mais feliz pela minha mãe do que por mim”.

Funcionária do mês

Depois de um ano como trainee, ela recebeu a proposta de migrar de área: sair da manutenção e partir para o operacional. Aceitou sem hesitar. Foi por causa do novo cargo que, aos 20 anos, conseguiu tirar sua carteira de motorista. “Nunca tinha dirigido um carro antes. Tive que treinar muito e pilotei até ônibus. Quando entrei em um caminhão pela primeira vez, fiquei na dúvida se ia conseguir entender todos os botões do painel”, lembra.

Ela transporta toneladas de estéril (barro) e minério dentro do Complexo Minerador de Carajás. Durante o turno, cumpre rotas. Faz várias viagens com o que foi retirado das minas e leva direto para depósitos, no caso de terra comum, ou para a britadeira, onde o minério é triturado.

 

“As áreas de operação não têm banheiros. Os homens conseguem se resolver. E a gente?”

 

Por causa do trabalho pesado, o espaço é predominantemente masculino – apesar de as pesquisas internas mostrarem um aumento no número de mulheres em áreas técnicas. Seu grupo é formado por apenas duas mulheres e mais de 60 homens, e piadinhas como “mulher no voltante, perigo constante” eram recorrentes. Hoje, ela é a funcionária mais antiga da equipe e inspira respeito. “Vejo as pessoas pedindo conselhos para ela. Como Narla é uma funcionária muito dedicada, serve de exemplo para os outros”, conta Franscisco de Souza Filho, um dos supervisores da área.

Para ela, o maior problema não são as brincadeiras. “As áreas de operação de minas não têm banheiros. Os homens conseguem se resolver fácil. Mas e a gente? Não posso beber muita água, porque, se der vontade no meio do turno, não tem o que fazer”, revela.

Um turno dura de seis a nove horas (das 6 horas às 15 horas; 15 horas à meia-noite; meia-noite às 6 horas). Por seis dias, ela cumpre um dos horários. Descansa dois e já emenda no próximo. A entrevista acontece justamente em uma de suas folgas. Mesmo assim, Narla está aflita e pergunta se ainda vai demorar. “Tenho aula hoje e um trabalho para entregar”, explica. Atualmente, ela faz curso técnico de mineração no Centro Técnico Profissionalizante. Assim como sua faculdade de administração, concluída em 2012, metade do curso também é paga pela Vale.

Tudo conforme o plano da mãe, Fátima. “Sabia que não teria condição de pagar uma faculdade para ela. Foi o jeito que pensei de Kely ter uma profissão”, diz. E essa história começou cedo. Foi ela quem alfabetizou a filha, aos 6 anos, mesmo tendo estudado só até a segunda série. Também se preocupava em guardar os salários de cabeleireira e vendedora de sapatos para garantir que ela estudasse em colégios particulares – e foi o que fez.

Narla reconhece o esforço. Por isso, sempre que sobra dinheiro, compra alguma coisa para a mãe. A última foi uma moto. Também se tornou responsável por todas as contas da casa, logo que começou a trabalhar, em 2004. “Pedi que minha mãe largasse os empregos dela como doméstica e cabeleireira e comecei a cuidar de tudo”, conta. Além das duas, moram na casa a avó, uma irmã adotiva, um primo pequeno, o namorado da mãe e sua filha. Ele também ajuda com as despesas. O imóvel é simples, feito de madeira e sem portas dividindo os seis cômodos.

O que Narla mais quer é construir a sua casa. Até agora, somente seu quarto é de tijolos e cimento – o que possibilitou a instalação de um ar-condicionado, um dos poucos luxos que se permite. Outra vontade era a de conhecer o pai biológico, que não quis assumi-la quando nasceu, em Marabá, cidade próxima dali. Por isso, leva no RG o sobrenome do primeiro marido da mãe. “Registrei a Kely quando ela tinha 5 anos de idade. Não queria que ela tivesse só meu sobrenome. E também precisava ser um nome diferente”, conta Fátima.

 

“Se entro numa loja com o uniforme [da Vale], as vendedoras são muito mais simpáticas”

 

Um dia, assistindo à TV, viu uma repórter chamada Narla. Se inspirou e registrou a filha. “Nunca chamei ela de Narla. Mas sei que é um nome marcante”, explica.

Em 2005, Narla Kely finalmente conheceu o pai. “Fui até Salvador encontrar com ele. A gente se abraçou, mas foi estranho. Continuo mandando e-mails, mas as respostas são frias, como se eu fosse uma colega distante”, solta, com pesar.

Da conversa com o pai tem uma coisa que não consegue esquecer: ele não acreditou no que ela trabalhava. “Muitas pessoas agem assim. É a prova de que não me conhecem e que as aparências enganam. Pena que na época não tinha uma foto para mostrar o caminhão”, ri.

Imagem não é tudo

O uniforme verde-água da empresa chama a atenção por onde passa na cidade, que tem pouco mais de 160 mil habitantes e é a segunda mais rica do estado – apesar de não aparentar. Os olhos crescem especialmente em fevereiro, época em que os funcionários ganham a participação de resultados da empresa. “Se entro numa loja com o uniforme, o atendimento é outro. As vendedoras são muito mais simpáticas, me oferecem tudo. Se vou simples, nem dão bola”, conta.

Narla não se maquia nem liga para roupas. É a mãe quem cuida de seu guarda-roupa, compra peças e insiste em pintar seus cabelos – e ainda escolhe a cor. Recentemente, Narla trocou sua foto do Facebook por uma em que aparecia supermaquiada. Recebeu mais de 15 comentários sugerindo que ela andasse sempre assim. “As pessoas não perceberam que tinha feito tudo no Photoshop”, se diverte.

Namorando há três anos um funcionário da empresa, ela diz que não pensa em casar nem em ter filhos tão cedo. Também não prevê sair de casa. “Não tenho vontade de sair daqui nem de morar no Núcleo [local onde a Vale oferece moradia para alguns funcionários]”, diz. Quando criança, ela chegou a morar ali, porque o primeiro marido de sua mãe era contratado da Vale. “Lá não tem liberdade pra fazer muita coisa, já que todo mundo é observado a todo tempo”, reflete.

Também não tem os barzinhos de MPB que adora frequentar nem as casas que tocam rock, estilo que passou a gostar recentemente, desde que descobriu Janis Joplin. Mas essas saídas são raras. Ela gosta mesmo é de ficar em casa, comer churrasco com a família e se encarregar da sobremesa.

Poder de escolha

Na pequena sala onde acontece a entrevista, o ventilador é disputadíssimo. O calendário mostra que é março e o termômetro aponta 35 graus. Mas é considerado inverno em Parauapebas. Isso porque, mesmo abaixo da linha do equador, o Pará segue as estações do ano do hemisfério norte. Na verdade, somente duas delas: seis meses de inverno, quando as chuvas são intensas, e, a partir de julho, seis meses de verão, com temperaturas acima de 40 graus.

Narla está ansiosa e pergunta mais uma vez se a entrevista está perto do fim. Cedo e termino: “Como se imagina daqui a dez anos?”. “Dona de um salão de beleza.” E o caminhão? “Foi ele que fez essa escolha ser possível. Antes, tudo que não queria era trabalhar em salão. E agora posso ser dona de um.”

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