Mira, mama: sin los dientes

por Milly Lacombe
Tpm #142

Milly Lacombe: ’Ou sobre como você me ensina a viver, e a morrer, um pouco a cada dia’

Semana passada queria ter ligado para você. Era coisa boba, como quase sempre, mas eu sei que quando contasse o que aconteceu você ia rir, e poucas coisas me davam tanto prazer quanto fazer você rir. Quando morávamos juntas você ria das coisas mais tontas e sem sentido, como quando eu corria atrás do Rodolfo brincando de animal selvagem, e ele fugia latindo desesperadamente em busca de abrigo em seu colo. O som da sua risada era uma melodia tão leve e sincera que me fazia rir junto. São minhas memórias mais doces essas que envolvem você rindo.

Então, quando naquele fim de tarde de sextafeira o dentista disse que a infecção era grande e a dor só passaria quando ele arrancasse o dente, e esse já era o segundo dente em menos de um ano que teria que ser arrancado, pensei que se você pudesse saber disso ia dizer que esse negócio de perder dente era coisa de velho e que ainda bem que nosso relacionamento terminou antes de você ter que lidar com a minha banguelice. Você ainda ia dizer: “Dona Milly, dona Milly, os anos não passam de graça”. Ia falar alguma bobagem dessas porque você tratava o envelhecimento como se ele jamais fosse acontecer, e sempre que você agia assim eu ficava brava e dizia que seu dia também chegaria porque você não era tão mais nova do que eu, e você ria de um jeito estranho, como se soubesse que nunca iria envelhecer mesmo, mas ria de um jeito também leve e sincero, e eu ria junto. Tudo isso a gente falaria pelo telefone antes de você começar a me contar de seus novos amores, histórias sempre mais interessantes e emocionantes do que meu envelhecimento.

Então, quando o dentista não deu opção e disse que o dente precisava ser arrancado e em seguida mencionou a palavra implante, pensei em você. E, depois de uma hora de terror e pânico, vendo aquele homem enorme suar e pegar ferramentas de mecânico para conseguir extrair o dente que teimava em não sair, voltando sozinha para casa com o rosto inchado e a boca torta, torci para que você pudesse me ver. Sua risada seria um consolo para a dor que estava prestes a chegar quando o efeito da anestesia passasse. Quem sabe você estivesse vendo? Eu não sei. Torço e peço para que exista mais além disto aqui, como você tantas vezes nos últimos meses antes do acidente tentou me dizer que havia, mas eu não sei; de verdade eu não sei. Desde que você foi embora tento dar sentido, e ver outros mundos, e acreditar e meditar e me elevar e ter certeza de que vou me encontrar com você outra vez, e nessa hora te abraçar e escutar sua risada. Tem dias que fico exausta tentando ver sinais e conferir uma razão para tudo isto aqui. Tem dias que consigo sentir, tem dias que consigo ver um pouco mais longe, mas tem outros nos quais a incerteza e a tristeza são maiores e eu me entrego ao cansaço e à saudade que aumenta um pouco mais todos os dias.

Aceitar é o truque

Quando cheguei do dentista liguei para minha mãe para reclamar de mais um dente perdido e dizer que isso de ficar arrancando dente estava muito chato porque nunca tinha acontecido antes, e ela respondeu: “Eu também nunca fiquei velha antes”, encerrando o assunto e me trazendo de volta à realidade. Nessa hora parei com o mi-mi-mi. E verdade é que a dor de perder você colocou todas as demais em perspectiva. O que é arrancar um dente? Ou todos eles? Sua morte me tirou muitos medos, e esse presente que você deixou é gigante. Então deitei no sofá da sala com a embalagem do analgésico ao lado e fechei os olhos, aceitando o dente perdido e a dor que viria. Aceitar é o truque, e eu estou aprendendo isso um dia depois do outro, uma dor depois da outra. A ausência de medo liberta, e você me libertou.

Noite passada sonhei com você. Você ria e falava alguma coisa, eu não lembro o que, mas lembro que eu pedia para você não parar de falar porque estava com muita saudade da sua voz e queria continuar a escutar. Eu chorava, como ainda faço quase todos os dias, mas você já não ligava para o meu choro e apenas falava. Aí eu disse que ia fechar os olhos, que no sonho estavam abertos para ver você, e pedi para você continuar a falar qualquer bobagem porque eu queria apenas escutar sua voz. Nessa hora, embalada pela música da voz que era tão sua e que agora eu escutava outra vez desse jeito tão estranhamente real, comecei a dançar bem devagar mexendo a cabeça para um lado e para o outro, e chorei um pouco mais. Antes, quando eu chorava nesses sonhos, você chorava junto, mas quem aguenta tanto choro assim? Não você, que sempre preferiu rir, embora nunca tenha tido vergonha de chorar. E, mesmo chorando, eu fiquei feliz por poder, outra vez, escutar você rindo.

Talvez, em algum lugar, você ainda esteja rindo e me vendo envelhecer. Gosto de pensar nesse lugar como uma praia deserta em um final de tarde de primavera. Uma dessas praias de água muito azul e limpa que conhecemos juntas e nas quais tantas vezes sentamos na areia para ver a lua nascer. Gosto de fechar os olhos e ver você nesse lugar onde não existem dores, nem saudade, nem dentes que estragam. Gosto de pensar que a dor que eu ainda sinto já não pode alcançar você, e que embora eu não tenha absoluta certeza de que um dia vou ver você outra vez, e colocar minha cabeça em seu ombro daquele jeito que eu tanto gostava de fazer, você já sabe que a gente vai se reencontrar e se abraçar e rir junto de alguma bobagem – como da velhice, da morte ou da vida.

A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

fechar