A última das liberdades

por Milly Lacombe
Tpm #171

Milly Lacombe: Aos 80 anos, minha mãe me parece feliz como nunca, e não é difícil perceber que o que a move é uma felicidade que não depende da aprovação de terceiros

Meu sobrinho Antonio, 20 anos, tem o hábito de escutar músicas antigas italianas. Ninguém sabe direito como o costume se instalou, mas ele não apenas escuta o dia inteiro, como sabe cantar quase todas e ainda as reproduz em seu violão. Talvez se trate de um gene que pule uma geração, porque apenas uma pessoa na família compartilha dessa paixão: minha mãe, 80 anos, avó de Antonio e que tem todas as desculpas do mundo porque nasceu em uma cidadezinha perto de Roma chamada Terracina e cresceu escutando as tais canções. Então era apenas natural que quando o tour de Peppino Di Capri, o Roberto Carlos italiano, passasse por São Paulo os dois fossem assistir. O que não era natural é que eu me juntasse ao grupo, mas como sou incapaz de negar qualquer pedido que Antonio me faça, torrei meu cartão de crédito, dividi o valor em múltiplas vezes, e numa noite estrelada de novembro fui com eles ao evento.

Horas antes de sairmos, minha mãe me disse, enquanto preparava o jantar, que já tinha decidido que roupa usaria: “A mesma que usei no casamento de seu irmão”, e por aí temos uma ideia da importância daquela noite para ela. Enquanto se maquiava no banheiro ia me contando que naquela manhã tinha ido à farmácia e que, cansada de ficar em pé sem ser atendida, passou para o lado de lá do balcão. “A funcionária olhou para mim e disse muito brava: ‘O que a senhora faz aqui? Não pode isso’, e eu imediatamente respondi: ‘Ah, agora você me vê?’”, contou, interrompendo a aplicação do rímel e me olhando como quem espera uma reação. Nessas horas eu apenas repito “Mãe, mãe…”, enquanto silenciosamente agradeço às deusas por não ter presenciado a cena, embora eu tenha presenciado muitas mais do que acharia saudável, como a do dia em que ela invadiu meu jogo de futebol para correr atrás de uma menina que tinha me jogado uma bola na cara. Sentada em sua cama, olhando ela terminar de se maquiar, fiquei pensando que aquela era uma pessoa completamente diferente da mulher que me trouxe ao mundo. A mulher de antes vivia tensa e preocupada e amargurada; a mulher de hoje vivia rindo e raramente reclamava de alguma coisa além das dores da artrose.

Minha mãe e eu tivemos um relacionamento tumultuado até alguns anos atrás. Quando eu era pequena, ela era sempre muito dura, brava, autoritária e não hesitava em me dar uns tapas em nome de deixar uma “lição”. Sempre achei curioso que as tais lições não fossem dadas a meus outros irmãos, mas como sou a primogênita me convencia de que era assim mesmo. Tudo piorou quando contei que era gay e paramos de nos falar, mas depois de alguns anos ela se curou da homofobia e voltamos a conviver. Hoje é amiga de minha ex-mulher, me aconselha em relação a namoradas e trata do assunto com naturalidade.

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Observar as mudanças pelas quais minha mãe passou me fez achar que viver por quase oito décadas confere a uma mulher um tipo de sabedoria que talvez apenas o tempo consiga oferecer. Meus sobrinhos recorrem a ela para os mais variados problemas porque, ao contrário da mulher confrontadora e sem paciência que um dia foi, passou a ser mediadora e apaziguadora, coisa que a julgar por todas as brigas em que já se meteu na vida era mesmo impossível de prever. Como tem nove netos, é a avó mais ocupada do mundo, e passa os dias entre as casas de meus irmãos, levando e buscando as crianças nos mais variados lugares.

Amor e afeto
Outro dia, a caminho do clube com dois deles num sábado de sol, me convidou para ir, mas a perspectiva de passar o sábado sozinha em casa lendo ou vendo Netflix era muito tentadora e eu recusei, explicando o que gostaria de fazer, ou de não fazer. Nunca fui muito boa em ser sincera com essas coisas de família, e uma versão menos madura de mim mesma teria inventado desculpa melhor, mas decidi que falaria a verdade. Minha mãe disse que me entendia perfeitamente, e que assim que as funções de avó acabassem naquele dia ela correria para casa para ficar sozinha vendo a RAI e comendo macarrão sem ser importunada. “A raiz das mazelas humanas é a falta de um quarto dentro do qual você possa se sentar sossegado sem ser importunado”, escreveu Pascal. Minha mãe entende isso agora, e aos 80 anos me parece feliz como nunca, e não é difícil perceber que o que a move é uma felicidade que não depende da aprovação, ou do olhar, de terceiros. Fico pensando que talvez não precisemos esperar tanto para alcançar esse lugar.

É curioso observar minha mãe atuar como avó porque fica claro que ela aproveita os netos para corrigir todos os deslizes que julga ter cometido no papel de mãe, como a dificuldade em demonstrar amor de forma direta. Com os netos ela não se cansa de abraçar, beijar e dizer “eu te amo” muitas vezes ao dia – pessoalmente, pelo telefone, por mensagens –, coisa que com os filhos era muito rara. Freud sugeriu que os erros que cometemos não são fruto do acaso, mas de conflitos e desejos reprimidos; e olhando minha mãe dar seus passos pela vida me parece que já não há conflitos ou desejos reprimidos porque tudo o que sai dela hoje é amor, afeto e compreensão. Viktor Frankl, um sobrevivente do Holocausto, escreveu que na vida podem nos tirar tudo menos a última de nossas liberdades: escolher que atitude ter diante das circunstâncias que se apresentam. Minha mãe, na última fase, escolheu o bom humor e o amor.

Mas o amor se manifesta de variadas formas e é preciso entender suas sutilezas. Quando voltávamos da balada com Peppino, ela reclamou de dores nas mãos, castigadas pela artrose. “Acho que hoje elas estão tortas porque acabei usando elas muito mal com você”, me disse rindo, mas um pouco sem graça. E eu entendi que, do jeito italianado dela, aquele era ao mesmo tempo um agradecimento pela noite que passamos, um pedido de desculpas e uma declaração de amor.

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