Milagres não existem

por Redação
Tpm #62

Com a frieza da mente, a gente analisa a vida em vez de vivê-la

Escutei outro dia algo intrigante, que prometia a cura de todos os males, alegria aos deprimidos e esperança para errantes e desenganados! Também ouvi dizer sobre os estados alterados de consciência, paz mental e amor incondicional. A sensação de bem-estar no corpo. Tudo tão convidativo... O ponto mais alto: o conhecimento supremo sobre quem genuinamente somos. Como “ioga” está definido o nome do milagre. O fato é que, para operá-lo, leva mais que uma prática. E, para vivê-lo, bem mais que uma intenção.

Admito que, embora minhas aspirações estivessem na conquista da vida após a morte, como a famosa iluminação ou a visita a algum desses paraísos descritos nas escrituras hindus, foi na vida cotidiana que a ioga fez morada. Do topo da minha experiência, vejo a facilidade de viver bloqueando todas as minhas emoções com a falsa idéia de que, se não as sinto, posso evitar as sensações que acompanham cada uma delas. Com a frieza da mente, então, é possível analisar a vida em vez de vivê-la.

E entre tantos pensamentos fica o desejo, um pensamento em si, de verdadeiramente meditar. Sentada firmemente sobre o chão, eu esperava o momento em que tudo desaparecesse, inclusive eu mesma, e algo sensacional acontecesse... Mas é no ordinário que o extraordinário se revela.

Depois de anos no caminho, confesso que notei alguns detalhes. Caminhava para a morte da vida em vez do término do ciclo de nascimento e morte (samsara). Percebi que a dualidade está no nascimento e na morte. A vida simplesmente manifesta a dualidade, transcende ambos. Quando morri para a vida, ainda assim consegui estar viva. E foi tudo. O viver começou há pouco, depois que permiti que essa tal ioga me levasse à sinceridade sobre quem sou em vez da negação. Esta, inclusive, é a pergunta que não cala: “Quem sou eu?”. A resposta não é nosso sexo, nosso papel na sociedade ou na família, nosso cargo ou nosso nome...

Shankara, um dos maiores mestres do Vedanta Advaita (filosofia hindu baseada na não-dualidade), aceitou somente quatro discípulos. Quando passou por aqui, no século VIII, dizia que não queria seguidores. Deixou claro a importância do cumprimento da missão de cada um, como retirante ou pai de família. A vida levada com retidão protegia o dharma, leis universais de ética e moral. Tanto que na Índia é dito: “Quem protege o dharma é protegido pelo dharma”. Sem cada um de nós ele não existe, depende de nós, depende que cada um se proponha a praticar ioga fora das salas, longe dos amigos, distante da cortesia e amorosidade dos ashrams, mas bem aqui onde estamos agora. Aspecto nenhum da vida está separado da ioga.

Nem um deus, nem muitos deuses
Então, por favor, me permita desmistificar alguns pontos. Acordar antes de o sol nascer todos os dias e manter a disciplina para que o cotidiano não interfira no meu ser é mais ioga que dormir até tarde e falar sobre a ioga – como eu fazia. Quando estou em um asana (postura) qualquer, até aqueles mais aparentemente inofensivos, sinto dor, e tocar isso sem sofrer é mais ioga do que evitar meus desconfortos – como tenho maestria em executar. E, finalmente, quando saio da sala, longe de ter meditado, mas pertinho de ter caído no sono, então encaro o trabalho que por vezes fico irritada desempenhando. Mas quando não permito que isso determine meu estado de espírito começo, então, a ter uma vaga idéia do que li de sábios sobre equanimidade... Bem lá longe avisto a ioga!

Minha mente está mais ativa que antes, meu corpo mais forte, e minha sensibilidade à flor da pele! Curiosamente vivo um estilo de vida que antes era meramente filosofia, uma fugitiva covarde em busca de alento. Agora que a vida está manifesta, nas facetas boas e ruins que procuro aceitar em mim, noto a dualidade a que todos estamos expostos. Em um lapso de segundo, concentro no inteiro e não nas partes, sabendo que cada pedaço ainda é plenitude – mesmo quando eu não reconheço.

 “Nem um deus, nem muitos deuses. Somente Deus.” Baseado nas escrituras sagradas, ouvi um professor de Vedanta dizer sobre os muitos ídolos do hinduísmo. Olho para todo lugar e reverencio o que vejo: “Tudo é Ele”, compreendi. Mas olho para mim, agora que já sei que Ele é tudo, que nada pode excluir, e ainda me pergunto: “Quem sou eu?”.

Por meio da minha história, você pensa me conhecer e eu nem mesmo sei quem é você, que me lê. Mas não importa. Por que poderia você me dizer quem verdadeiramente é?

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