A saga de uma patricinha que se viciou em cocaína, virou traficante e hoje é foragida da Justiça
A saga de uma patricinha de Moema, bairro de alto padrão paulistano, que se viciou em cocaína, virou traficante casca-grossa e hoje, foragida da Justiça, tenta levar uma vida normal
A caminho da faculdade, numa cidade do interior de São Paulo, Poliana* olha várias vezes antes de atravessar a rua. Tem medo de ser atropelada e acordar algemada numa maca de hospital, ouvindo um policial sádico dizer “puxamos tua capivara, menina, a casa caiu”. O medo só não é maior porque agora ela anda com um RG falso na bolsa, descolado por um amigo.
Na entrada do prédio, ela repara numa viatura da PM estacionada. Será que eles estão ali por causa dela? Nem pensa nisso, menina. Ela segue caminhando em direção à sala de aula, ouvindo Joey Ramone berrar “Poison Heart” nos seus fones de ouvido. É isso aí, Joey, todo mundo tem um coração envenenado. E Poliana sabe bem qual veneno inoculou no seu.
Vai, Poliana, entra na sala, abraça os colegas do curso de direito, dá risada e faz o povo rir junto, que nisso você é boa. Aqui, você é Poliana, a universitária de 34 anos a caminho da segunda graduação que passa as manhãs aprendendo como as leis colocam ordem no mundo. Um professor comenta a cor nova de seu cabelo. Ela, loira como uma Barbie, tira barato: “É para não ser reconhecida, professor. Sou foragida da Justiça”. Todo mundo ri. Mas não é piada. Há um mandado de prisão expedido contra ela em 2008, quando foi condenada a seis anos de reclusão por tráfico de drogas – a acusação prescreve apenas em 2020. Ninguém acreditaria, muito menos seus colegas de classe.
Afastada das drogas há 11 anos, ela leva hoje o que parece ser uma vida normal – marido, gatos, bonsai, apartamento e faculdade. Tem blog e perfil no Facebook. Só quem a conhece bem sabe que Poliana não tem bens em seu nome, não recebe correspondência e, quando vai visitar os parentes, numa cidade a 80 quilômetros dali, entra e sai da casa trancada no porta-malas do carro, para evitar ser vista pelos vizinhos, que conhecem sua história e poderiam discar 190 no telefone assim que a vissem.
Não há dia em que Poliana não pense em se entregar, mas essa é uma opção cada vez mais difícil conforme o tempo passa. Ela sabe o quanto a vida longe do crime a humanizou, deixando-a mole para encarar outra vez a rotina da cadeia, que conhece bem. Usar talheres de plástico para comer alimentos que variam entre o podre e o malcozido, ter parentes humilhados em revistas constrangedoras, afiar escovas de dentes no chão ou guardar pedaços de espelho para enfiar em alguém no caso de uma briga... A Poliana que passou por tudo isso era uma traficante cheia de marra, que apanhava da polícia sem derramar uma lágrima, orgulhosa da própria resistência. Sobrou pouco dela na Poliana atual. “Hoje sou uma menina. Eu me amo e não quero sentir dor”, diz.
Patinho feio
Não é de hoje que Poliana mistura diferentes vidas em uma. Já era assim no começo da adolescência em Moema, bairro conhecido por ter o mais alto IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) de São Paulo. Filha de um analista de sistemas e uma professora, era uma garota sem amigas. Não tinha paciência para frequentar as rodinhas das meninas, aqueles pequenos universos cor-de-rosa de conchavos e vaidades. Elas, por sua vez, estranhavam uma menina preferir fazer caratê a balé. Poliana era a magrela-feia-de-nariz-grande-e-cabelo-ruim que todo mundo da classe amava odiar.
Nos fins de semana e nas férias, Poliana ia para a cidade natal dos seus pais e tudo mudava. Ir para o interior era como atravessar um portal mágico que a transformava em outra pessoa, bem mais interessante. Lá ela tinha amigas, suas roupas faziam sucesso e... os caras a achavam bonita! Foi onde deu o primeiro beijo, conheceu os primeiros namorados, perdeu a virgindade. E onde começou a usar drogas. Tinha 11 anos quando cheirou cocaína pela primeira vez. “Sempre quis estar no lado negro da força”, conta.
Ao contrário da mãe – tão orgulhosa da própria beleza que evitou tratar um câncer porque não queria perder os cabelos loiros; acabou morrendo quando a filha tinha 16 anos –, Poliana gostava de ser diferente, tinha uma inclinação para o sombrio. Passou anos se equilibrando entre os universos da patricinha de Moema e o da dependente química que ia sozinha comprar pó nas bocas. Com 20 anos, cursava direito e fazia estágio no Fórum Criminal – ali mesmo conhecia os canais para comprar cocaína, ali mesmo cheirava.
A vida dupla terminou quando seu pai resolveu proibi-la de namorar com Fabrício, um eletricista, dependente químico como ela, que morava no interior. Poliana não teve dúvidas. No dia do aniversário do pai, fugiu de casa, deixando na porta da geladeira um bilhete com uma música do Raul Seixas: “Pai, eu já tô crescidinho, pague para ver que eu aposto”. Deixou para trás Moema, a faculdade, o emprego, tudo. Aos 21 anos, era pura adolescência e rock’n’roll. “Tudo o que eu não queria era levar uma vida ordinária”, lembra.
Foi morar com Fabrício na casa da mãe dele, que odiava tanto Poliana quanto seu pai odiava Fabrício. Bastou um mês para a mãe se cansar do casal, que passava o dia cheirando cocaína, e expulsar os dois. Foram morar na rua. Sentiam-se Romeu e Julieta junkies, expulsos de seus lares por conta de um amor proibido. Parecia que era o fundo do poço. Mas logo ela descobriria que o fundo é movediço: sempre dá para descer mais.
Após uma semana vivendo na rua, conseguiram alugar um apartamento em um conjunto habitacional. Não foram felizes para sempre. Fabrício passou a fumar crack, e logo estava roubando dinheiro e objetos da casa para comprar a droga. Difícil levar uma vida de casal apaixonado quando a Julieta deixa de deitar com seu Romeu por recear que ele esteja fazendo programas por aí em troca de pedra.
Reboot
Não que Poliana estivesse muito melhor. Não usava crack, mas cheirava sem parar. Em um ano, passou por três pneumonias e chegou a pesar 45 quilos. Trabalhava como babá e manicure para as mulheres da boca de fumo. Num dia em que Fabrício ficou fora de casa, levando os últimos R$ 10 do casal, procurou suas freguesas e descolou um emprego para vender a droga. Passou para o outro lado do balcão.
Começou traficando na praça, onde criou sua marca: os papelotes enrolados em fita rosa, todos com a mesma quantidade bem pesada. Subiu rápido na hierarquia. Em poucos meses, ela e Fabrício estavam gerenciando a própria boca e abastecendo outras da região. Sua origem era um diferencial. Mesmo tendo deixado Moema, Moema ainda continuava estampada nela, e a cara de menina branca, “criada a leite com pera”, era um trunfo para escapar da polícia.
Mas nem isso a livrou de cair no meio de uma operação policial que deteve seis membros da quadrilha, inclusive o chefe de Poliana, um policial militar. Em junho de 2002, ela e Fabrício se viram cercados pela polícia ao sair de um ônibus, levando 1 quilo de cocaína na mochila. “Perdeu, perdeu”, ouviu um policial gritar.
Dali a algumas horas, sentada na delegacia, a barriga e a cabeça doendo por conta dos murros que havia levado dos policiais, Poliana se viu tomada por uma surpreendente calma. “Tive uma sensação de ‘agora acabou’. Não preciso mais lutar por nada. Cheguei ao último estágio, o fim do fim.” Sentiu-se finalmente em paz.
Quatro meses depois, numa tarde chuvosa, deixou a cadeia. O advogado que sua família arrumara havia conseguido:
Poliana responderia ao processo em liberdade. Preferiu nem pensar nas acusações. Internou-se numa clínica para recuperação de dependentes químicos e só saiu oito meses depois. Contrariando todas as regras, apaixonou-se por um colega de internação, Marcelo, que se recuperava do vício em crack. Quem trabalha na área garante que “amor de viciado não sai da clínica”, já que um ajuda a alimentar a dependência do outro. “Quase todos os casos que conheço deram errado”, afirma Marcelo, que hoje tem 41 anos e trabalha como psicólogo, especializado justamente em dependência química. A única exceção que conhece é a dele mesmo: em 10 de agosto deste ano, ele e Poliana comemoraram o aniversário de dez anos do primeiro beijo, trocado às escondidas na clínica onde estavam internados.
“O que eu mais quero hoje é levar uma vida ordinária. Poder dirigir, receber uma carta em meu nome, ter o direito de chamar a polícia se for assaltada...”
Poliana deu um reboot na vida. Longe da cocaína, formou-se em jornalismo. Ela e Marcelo marcaram casamento para a primavera de 2008, na cidade natal dos pais de Poliana. Já se preparava para escolher o vestido de noiva quando um parente lhe trouxe uma fofoca: a condenação de Poliana havia saído, e a polícia da cidade pretendia
prendê-la, provavelmente durante a cerimônia. O maldito processo... Poliana tinha esquecido dele. Agora era tarde. Cancelou a cerimônia, mudou de cidade e desistiu de trabalhar como jornalista.
A sentença que condenou Poliana afirmava que “a ordem pública correria risco se ela ficasse livre”. Não é fácil entender qual risco ela oferece hoje à sociedade. “Seria muita injustiça mandar para a prisão uma pessoa que está totalmente ressocializada, sem nenhum vínculo com a criminalidade”, diz Cristiano Maronna, doutor em direito penal pela USP e diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Ele reconhece, porém, que muitos magistrados pensam diferente. “Existe um fetiche pela prisão, como se fosse a única forma de punição possível.”
Hoje, a Poliana de tantas vidas leva o que mais parece uma meia-vida. Quando seu pai morreu, no ano passado, não pôde comparecer ao enterro. Graduou-se em jornalismo, mas não pode exercer a profissão. Também não poderá trabalhar com o que aprende agora no curso de direito. Ela sonha com a vida comum que deixou para trás ao fugir
de casa, há 13 anos. “O que eu mais quero hoje é levar uma vida ordinária. Poder dirigir, receber uma carta em meu nome, ter o direito de chamar a polícia se for assaltada...”
Enquanto sonha, a estudante de direito busca saídas, como pedir a anulação do seu julgamento, argumentando que o juiz não levou em conta sua condição de dependente química. Se nada der certo, ela está decidida: “Vou me entregar”. Talvez a única forma de Poliana se libertar seja abrindo mão da liberdade.
*Por motivos de segurança, os nomes dos personagens desta matéria são ficcionais