Acabei de me mudar para uma casa na floresta, mesmo nunca tendo gostado de insetos e trilhas
Nunca gostei de mato. Tenho medo de escuro, pouco pulmão pra trilhas e sou absolutamente dependente de estabelecimentos 24 horas. Durmo em paz sabendo que no mundo em que vivo existem a TV a cabo, as emergências dos hospitais e os alimentos industrializados.
Talvez me falte transcendência. Meu cérebro é um psicopata hiperativo que só descansa com duas drogas pesadas: álcool e cinema americano. Só eles o fazem esquecer de tudo o que durante o resto do tempo tenho que lembrar. Mas a natureza, que a tantos consola e redime, a mim, me angustia. Não há araucária que me liberte de saber meu CPF.
Que fique claro que escrevo aqui como quem se confessa, sabendo do risco iminente de aborrecer meus 18 estimados leitores. Que talvez só não me abandonem definitivamente por compaixão. Ou não é pra ter pena de alguém que não abandona os pensamentos nem diante do Grand Canyon?
Casa nova
Isso pra não falar nos constrangimentos sociais. Às vezes, em roda de amigos, me dou conta de que sou o único ser humano da região Sudeste a não frequentar Visconde de Mauá, por exemplo. Por favor, não levem a mal. Nada contra a cidade em si. Também não faço planos para ir a Fernando de Noronha, que dizem ser incrível. Mas uma hora de estrada de terra no meio do nada, sem um boteco que venda biscoito de polvilho e Grapette, sem uma assembleia de Deus na beira do caminho, nem que fosse pra chegar a Paris. O infinito foi feito para os fortes, não para aqueles que nem sequer se desapegam da pipoca no cinema. Meu estado corrente é o da ansiedade, e, se não posso evitá-lo, junto-me a ele. Não sem tristeza, mas com a resignação de quem há 36 anos carrega esse corpo.
Tenho certeza de que perco muito. E quer saber? Não sei quando isso aconteceu. Quando menina me lembro de ficar horas vendo estrela cadente no céu de Angra. Deitávamos numa colcha, meus irmãos e eu, e inventávamos nomes para as constelações que não reconhecíamos. Os nomes eram exóticos e as histórias, amalucadas. O céu fazia parte sem esforço, e cheguei a entender até de vento. Passava horas pescando, muitas vezes sozinha, e nunca confundi garoupa com badejo.
Por que será então que hoje, ao pegar uma serra, me deprimo assim que o sinal do celular começa a falhar? Por que na hora de fazer a mala me abasteço como se fosse para o Himalaia? Chocolates, livros de 500 páginas, revistas, todas as séries que nunca vou ver e, claro, aquele retângulo prateado que mudou o mundo e me livra da ignorância ao mesmo tempo que a mantém.
Falo disso porque há cerca de mês e meio me mudei para a floresta. Meu marido construiu uma casa à qual se dedicou como a um filho, e, diante de tanta dedicação, não pude detê-lo. Não tem sido fácil conviver com escadas, gafanhotos e besouros, mas ver os meninos correndo na grama me faz parecer uma tola urbana, vítima de uma doença contemporânea que é nunca estar presente de fato.
Pois bem. Tenho tentado me ater à paisagem e adquirir essa cultura admirável que é saber nomes de árvores e plantas, e saber o valor do concreto com o ferro, e também o do silêncio e do isolamento. Mas temo que o que realmente seja capaz de me fazer abrir mão do prazer de viver na cidade seja uma vista bem mais exclusiva: minha própria família, que eu construí com tanto esmero, na primeira casa que fizemos juntos.
Tijolo, estrutura, madeira, vidro, ipês e coragem.
Maria Ribeiro, 36 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de Elite, em 2007, e em Tropa de Elite 2, em 2010. Seu e-mail: ribeirom@globo.com