Ela está entre as primeiras do país no Lançamento de Disco e é tricampeã de Handball adaptado. Este ano, abraçou o surf e se dedica à inclusão de novos atletas
Quando a catarinense Mary Cardoso, 25, tinha alguns meses de vida, sua mãe notou que uma de suas perninhas estava ficando torta. Muitos exames e diagnósticos errados depois, descobriram que ela tinha nascido com duas doenças: pseudoartrose, uma fragilização do osso e não se restaura, e neurofibromatose, que causa o crescimento anormal de tecido nervoso pelo corpo, formando pequenos tumores externos. Ambas, inter-relacionadas.
A partir daí, foram quase duas décadas tratando a perna esquerda: imobilização com gesso e ferros (do Aparelho Ilizarov) que vão do osso à parte externa, por vários anos; muita fisioterapia e algumas cirurgias, dentre elas, um transplante de osso (a fíbula da perna direita foi colocada no lugar da tíbia da perna). Que deu certo.
Aos 19 anos, Mary estava finalmente curada. Estudava jornalismo (se formou), entrou na academia e começou a praticar caratê até que descobriu um caroço na coxa esquerda. Era um câncer relacionado à pseudoartrose, com risco de amputação do membro. “Foi uma época bem difícil, cheguei ao fundo do poço. A amputação me chocava muito. Eu tratei a perna por 19 anos pra poder andar, não pra amputar no final”.
O tumor não chegou atingir o músculo e pôde ser retirado sem afetar a força da perna. Nos oito meses entre a primeira cirurgia e o fim do tratamento (que não precisou de rádio nem de quimioterapia), Mary conheceu a Judecri — Associação de Deficientes Físicos de Criciúma (sua cidade natal) e foi apresentada ao universo do esporte adaptado. “Mudou minha vida. Jamais imaginaria chegar onde estou porque ser atleta era algo muito fora da minha realidade”.
Na Judecri, ela começou a treinar Tênis de Mesa, em 2010, e Handball adaptado (em cadeira de rodas e no qual foi tricampeã brasileira), e Lançamento de Disco, em 2012. Se profissionalizou em todos, mas seguiu apenas com o Atletismo. No Lançamento de Disco, está entre as três primeiras do Brasil. Não conseguiu a marca mínima para as Paraolimpíadas do Rio, mas segue treinando firme. Tem bolsa municipal e nacional (do Comitê Paraolímpico Brasileiro) e patrocínio (permuta com academia, treinamento funcional, suplementação alimentar). Em 2015, foi indicada pela Fundação Catarinense de Esporte (Fesporte) para o Troféu Gustavo Kuerten de melhor paratleta de Santa Catarina.
O surf entrou este ano na vida de Mary, impulsionado pelas aulas do professor Danilo Boss, que ela conheceu no projeto Praia Acessível, criado para levar pessoas com deficiências físicas para o mar (sentadas em cadeiras anfíbias e com equipe de segurança), em Balneário Rincão (SC). “O Danilo acreditou no meu sonho e me colocou na minha primeira onda. Foi um grande parceiro”, conta.
Na mesma época, ela reencontrou um amigo também surfista e paratleta (da natação) que a chamou para participar um campeonato Xangri - lá (RS) e contou que o surf adaptado é muito forte no Rio de Janeiro mas ainda incipiente no Sul do país. “Aqui, sou a única mulher. Não encontramos nenhuma outra menina com deficiência que surfa”.
Paralelamente, ela conheceu (fuçando na internet) o Bella Surf, grupo que marca barcas de surf entre mulheres, também na região sul. “Achei bem bacana a ideia que elas apresentavam no Insta, super convidativas, a força feminina no surf. Elas não conheciam o esporte adaptado mas me apoiaram e a gente virou super amigas”.
LEIA TAMBÉM: Atletas mulheres continuam a ganhar menos que jogadores e times masculinos
A partir daí Mary, começou a manobrar também fora d’água. Está criando, com outras seis pessoas, a Associação Surf Sem Fronteiras (ASSF), de surf adaptado. Estão montando o estatuto e o passo seguinte é ir atrás de patrocínio. “Queremos tirar os deficientes de casa, levar pra água. Vamos montar uma estrutura bem redonda, com fisioterapeuta, salva-vidas, professor e apresentar o surf adaptado para cada vez mais gente”.
Mary sabe da importância desse movimento. É alucinada por mar desde pequena e sua voz embarga quando lembra de ter que ficar na areia enquanto outras crianças brincavam na água (o risco de infecção com aparelho Ilizarov é muito grande) mas ri ao contar que enlouquecia a mãe para embrulhar o gesso em sacos de lixo e dar um mergulho. “Sempre entrava um pouco de água e depois do banho eu secava com secador de cabelo, chorando, com medo da perna apodrecer. Mas no outro dia eu queria ir pro mar de novo”.
Hoje, ela pode. Tem, na canela, uma placa interna, que ajuda na fixação do osso, e usa um aparelho (uma órtese) de plástico e velcro que envolve a perna, fixa e protege. Nos pés, ela usa meia comum e embaixo delas, corre ligeira uma prancha de surf nas medidas certas para seu peso, altura, flutuação. E coragem.