Há muito tempo substituí metas românticas por propostas mensais menos ambiciosas
Cobrir travessas com PVC e não planejar a morte do fabricante, deixar o celular em casa nos fins de semana, ler menos jornal e mais Paulo Mendes Campos, aprender as 237 funções dos três controles remotos da minha TV: são nobres os desafios deste meu abril de 2012.
Há algum tempo substituí a lista de metas românticas que me impunha a cada janeiro por um punhado de propostas mensais, menos ambiciosas e, portanto, mais simpáticas, como ir ao hortifrúti toda sexta-feira e adquirir somente uma revista de moda por mês. A satisfação é imediata e o método, infalível: quando chega o dia 30 e vejo que cumpri apenas um item, como o importantíssimo “não comer o pote inteiro de sorvete de doce de leite em uma só madrugada”, me sinto a musa do verão.
Sei que nada disso importa mediante a crise na Síria e a recessão na Europa, mas arrisco dizer que, se não fôssemos ingênuos por natureza, nos contentaríamos com este que é o único movimento verdadeiramente possível da existência: a própria mudança.
Pois bem. A supraeu acordaria cedo. Faria um suco verde com folhas orgânicas enquanto leria os colunistas políticos e as resenhas de lançamentos literários. Nada de pão com manteiga vendo notícias da TV. Aliás, nada de TV. Às 11 da manhã eu já teria feito ioga e estaria pronta pra ir com meu filho pequeno à pracinha. Eu acharia uma delícia ir à pracinha e brincaria não só com meu filho, mas com vários bebês (e se um bebê empurrasse meu filho eu jamais teria raiva, imagine!). Uma hora depois eu estaria no carro com meu outro rebento para levá-lo à escola, e no caminho iríamos ouvindo as principais sinfonias de Beethoven, um absurdo essa gente que se rende a Michel Teló.
Minha casa teria flores frescas e luz indireta. Pouca carne vermelha. Uma obra de arte displicentemente deixada no chão do lavabo. Luminárias estilosas. Eu receberia os amigos – todos fiéis e espirituosos – com um vinho bacana que não fosse caríssimo (a supraeu jamais seria óbvia e ostensiva), saberia fazer um peixe assado com amêndoas e queijo de cabra, teria livros de arte na sala que foram realmente vistos (e não uma pilha de cadernos de cultura que jamais lerei).
Iria ao teatro todos os fins de semana. Peças de três horas? Delícia. Cinema também estaria no pacote, claro, mas nada de Hugh Grant. Anne Hathaway? Eu não saberia de quem se trata. A supraeu frequentaria mostras, reveria todos os Bergmans e, o que é melhor, compreenderia todos os Bergmans, e daria aquelas risadas pra si de quem faz parte do restrito e maravilhoso mundo da inteligência.
Propaganda enganosa
Livros seriam consumidos na velocidade da luz, e eu jamais xingaria quem fecha cruzamentos. Escreveria romances. Tiraria a maquiagem antes de dormir. Usaria com disciplina espartana vitamina C em volta dos olhos. Acharia roupa nova uma tolice.
Eu teria Twitter e Facebook, faria fotos lindíssimas no Instagram, editaria meus próprios filmes, seria um ser eletrônico e mecânico.
Eu não fumaria. Não beberia. Não tomaria calmantes nem antibióticos. Saberia sempre onde está o passaporte e o carnê do IPTU. Falaria pouco.
Mas existe uma coisa em mim que vale o ingresso, um defeito de fábrica que eu não mudaria por nada: o prazer de fazer má propaganda de mim mesma e saber que só permanecem comigo quatro tipos especialíssimos da categoria humana: meus filhos, meus pais, meu marido e aqueles seres estranhíssimos que gostam inclusive dos meus piores defeitos.
Por esses cristãos, a quem chamamos amigos, exibo meu lado B – talvez o único possível – e agradeço, comovida.
Maria Ribeiro, 36, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de Elite, em 2007, e em Tropa de Elite 2, em 2010. Seu e-mail: ribeirom@globo.com