A deputada gaúcha fala sobre ser mulher na política, machismo, violência e amor
Ela é líder da bancada do seu partido, o PCdoB, e faz parte da cúpula que decide o que vai ser votado pelos 513 deputados da Câmara toda semana. Aos 31 anos, Manuela d’Ávila tem currículo de prodígio: foi a vereadora mais jovem da história de Porto Alegre e a deputada mais votada do Rio Grande do Sul – duas vezes. Pena que, como toda brasileira, tem um medo: andar desacompanhada à noite.
Manuela chega cheia de frio no café do bairro Moinhos de Vento, em Porto Alegre, onde está marcada a entrevista com a Tpm. São os primeiros dias de outono e a umidade já encolhe os cotovelos da deputada, que só para de gesticular – e falar – enquanto ouve as perguntas, aproveitando os breves intervalos para esquentar as mãos, unidas em sanduíche às pernas cruzadas. Está loira, uma lateral do cabelo bem mais comprida que a outra, as unhas pintadas de vermelho e a maquiagem pronta para fotos. Na mesma noite, ela embarca para Paris, não de férias, como a irmã pensava, mas a convite do governo da França. Para os franceses, Manuela é uma líder do futuro. Para os brasileiros, uma figura que acontece no presente.
No mês que vem, a gaúcha completa 32 anos. Tem quase nove de mandato. Já concorreu duas vezes à prefeitura de Porto Alegre, estreou no Congresso como a deputada federal mais votada do Rio Grande do Sul em 2006, bateu a própria marca em 2010 e presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara, hoje tristemente comandada pelo deputado Marco Feliciano. É figura repetida do prêmio Congresso em Foco, que elege os melhores parlamentares pela internet, onde ela circula com muito mais destreza que os colegas mais velhos – a presidenta Dilma, 1,8 milhão de seguidores, segue @manudeputada no Twitter. Mas não é só a idade que a associa à juventude. Leis de estágio e meia-entrada para estudantes e a participação na criação do Marco Civil da Internet também ajudam na imagem de pessoa antenada. Junte-se a isso o fato de ter sido escolhida líder do seu partido, o PCdoB, por ser tão boa de briga quanto de criar consenso, e a conclusão é meio óbvia: Manuela é uma política hábil.
Comida, injustiça e violão
Ela, no entanto, não queria ser política. “Queria ser professora universitária. Fui frustrada por isso durante anos. Era deputada, mas estava sempre pensando no mestrado, em quando ia fazer um.” Até ser convidada a dar uma aula numa universidade de Buenos Aires e achar a coisa passiva demais. “Não ia ser feliz fazendo aquilo.” Pudera. Poucas coisas são eletrizantes se comparadas a uma campanha eleitoral, com comício, porta a porta, debate de TV, contagem de votos. Tanto é que, na última, em 2012, Manuela engordou 10 quilos por causa da ansiedade. Estava sem fumar. “É muito difícil fazer campanha sem fumar”, diz, antes de se gabar: “Mas já emagreci 12”.
Ex-gorda, ela abandonou a marca dos 100 quilos copiando a dieta de reeducação alimentar da irmã Carolina, aos 17 anos. Até então, era a típica gordinha extrovertida, não exatamente feliz com o corpo. “Quando tu tá fora do padrão, tu sabe o que é ser diferente, tá todo mundo de biquíni e tu não tá”, lembra. Manuela considera a experiência decisiva no caminho que tomaria depois, assim como o encontro, aos 8, com o primeiro menino de rua. “Era o Fábio. A gente brincava com ele de pega-pega. Um dia a gente brincou até mais tarde e ele disse que não tinha pra onde ir. Foi o fim de um capítulo.”
Filha de uma juíza e de um professor universitário, Manuela passou a infância mudando de cidade no interior do Rio Grande do Sul, por causa do trabalho da mãe. Quando voltou a Porto Alegre, na adolescência, caiu direto no movimento estudantil. Daí para a UNE foi um pulo e, na faculdade, já integrava as fileiras do partido. Era a época em que o carro oficial e os assessores não existiam, e Manuela se locomovia de ônibus e carona. E é quando ela fala do assunto que vira mais gente como a gente: é uma mulher e se acostumou a olhar pros lados.
“As pessoas imaginam uma família de riquinhos. Não é. Minha mãe dava aula de violão”
Tpm. Ser mulher dá medo às vezes?
Manuela D’Ávila. Sim, quando ando sozinha à noite. Na faculdade, ia e voltava para a aula de ônibus. Eu não dirijo. O ponto de parada era longe da minha casa e eu caminhava bastante. Não tinha tanto medo de ser assaltada, mas morria de medo da violência sexual. É um medo que entra na tua rotina. Hoje não tenho mais porque sou uma pessoa pública e tem sempre mais gente em volta.
Alguma mulher próxima a você já sofreu violência? Várias. Não dentro da minha família. Mas, por causa da militância, as pessoas se aproximam também pela história de vida delas. Teve um caso que, pra mim, foi muito marcante descobrir.
De quem? De uma militante que eu conheço desde os 16 anos. Eu estava num debate na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e uma juíza, que deveria defender as mulheres, estava lá dizendo que a Lei Maria da Penha extorquia os homens. Aí, essa militante deu um depoimento e contou que tinha sido vítima de violência no primeiro casamento. Eu não sabia, foi um choque. Chorei ouvindo.
Você entrou na política muito jovem. Tinha um mentor? Não. O meu pai sempre teve envolvimento com causas ambientais, então cresci separando lixo, comendo comida sem agrotóxico muito antes de isso ser moda, não podendo usar desodorante com CFC muito antes de as pessoas saberem que CFC destrói a camada de ozônio. Ele não era ambientalista, mas sempre estudava isso. Eu nunca quis ser política. Queria ser professora universitária.
De quê? De teoria da comunicação. Por muitos anos eu fui frustrada por não estar na academia. Era deputada, mas estava sempre pensando em quando fazer um mestrado. Por anos. Até que fui dar uma aula numa universidade e vi que não seria feliz fazendo aquilo. Achei passivo demais.
Como é a sua família? É uma família bem contemporânea, como as que existem hoje, mas na minha infância era bem diferente. Somos cinco irmãos, filhos de dois pais. Minha mãe se separou antes de a lei do divórcio existir. A história dela é superbonita. Trancou a faculdade para casar, depois quis voltar e, aí, dava aula de violão para se sustentar. Ela levava minhas irmãs para a aula na faculdade de direito, e foi aí que conheceu meu pai. Quando ela virou juíza, fomos todos morar no interior. E, apesar de ter nascido em Porto Alegre, tenho muitos traços de interiorana. Não cresci em apartamento. Quando falo que sou filha de juíza, as pessoas imaginam uma família de riquinhos, mas não é. É a família de uma professora de violão.
Sua infância teve muita música, então. Sim. A imagem da minha família é um monte de criança em torno do violão e do piano. Ontem à noite a minha mãe foi me dar tchau pra eu ir viajar e tocou piano.
Quanto tempo seus pais ficaram casados? Treze anos. Ele foi o segundo marido da minha mãe, que teve quatro.
Você já foi gorda na adolescência (chegou a pesar 100 quilos). Como lidava com isso? Acho que as pessoas que estão fora do padrão têm formas diferentes de reagir. Eu era líder de turma, engraçada. Chamar a atenção é um jeito de não deixar que os outros notem a diferença. Se tu é engraçada, as pessoas não têm tempo pra ver que tu não é a bonita. É uma forma de rir de ti primeiro. Tem uma letra do [Roberto] Frejat que diz “rir de tudo é desespero”, é um pouco isso, né?
E a parte de se descobrir mulher? Eu acabava fazendo outras coisas, me vestia diferente. Gostava de heavy metal. Tive duas amigas mulheres e o resto eram todos homens, metaleiros. Eu nunca tive essa negação da sexualidade que as gordinhas que não são extrovertidas têm. Mas os meus namorados eram sempre de fora da escola, mais velhos que eu.
Qual foi a maior agressão que você já sofreu por ser gorda? Uma vez cheguei na sala e tinha uma elefanta desenhada na mesa, foi no primeiro ou segundo ano [do ensino médio]. Nunca foi muito explícito, até porque eu era a líder da turma, era querida na minha escola. Mas tu sabe o que é estar fora do padrão, tem espelho em casa, né? Tá todo mundo de biquíni na praia e tu não tá. A mesa desenhada me machucou porque eu me via como uma elefanta.
“Tu sabe o que é estar fora do padrão. Tá todo mundo de biquíni e tu não tá”
Como emagreceu? Copiando a reeducação alimentar da minha irmã Carolina. Tinha 17 anos. Porque eu quis, nunca conseguiram me convencer de nada. Mesma coisa quando eu parei de fumar. Me enchiam o saco pra eu parar de fumar e, um dia, eu disse: “Vou parar de fumar hoje”.
Quando foi? Dia 10 de dezembro de 2010, às 15 horas, fumei meu último cigarro. Engordei 10 quilos depois, mas já emagreci 12. Um amigo meu perguntou: “O que você tá tomando?”. E eu disse: “Sopa!” [risos]. Para emagrecer tem que ser sopa, eu não tomo remédio.
Sempre brigou com a balança? Não, foi mais depois que eu parei de fumar. Engordei 3 quilos depois de parar, e aí eu engordei mais 7 na campanha [para a prefeitura de Porto Alegre, em 2012]. Fazer campanha sem cigarro é muito difícil. E até agora eu não voltei a fumar. Mas foi mais difícil emagrecer depois dos 30, fui comendo bem menos. Beeem menos carboidrato.
Faz exercício físico? Não, e tu não precisa botar isso na Tpm. Faço exercício, mas não os físicos normais, entende? [Manuela faz “exercícios” com o músico gaúcho Duca Leindecker, seu namorado há oito meses].
Sempre teve essa coisa de liderar? Sim, desde a quinta série eu fui líder de turma. E fiz muita campanha, fiz o jornal do colégio, tinha candidatos. Mas fui ter partido na faculdade.
É verdade que você organizou uma fuga coletiva no seu colégio? [Risos] Não fui eu que organizei, mas essa história é o máximo. A gente tinha uma professora de português e, coitada, ela marcou uma prova meio que sem ter dado as aulas direito. Ninguém tinha condições de fazer. No recreio começou uma troca de olhares, um olhou pro outro, o outro olhou pro um. Até hoje eu não sei como, mas todos os alunos – não eram só os rebeldes, os mais CDFs, os jogadores de vôlei, tinha a Carolina Albuquerque, que só tirava 10 em matemática, imagina como ela era – todos os 36 fugiram correndo.
Como? A gente saiu pelo portão como quem não quer nada, e o seu Almeida, o porteiro, perguntou: “Aonde vocês estão indo?”. E eu disse: “Para a aula de religião”, que era em outro prédio. Quando faltavam dois para sair, ele disse: “Mas o professor de religião está em São Leopoldo, e não é dia de aula”. Aí a gente saiu correndo! E fomos pro Coiote, um boteco na avenida Dom Pedro II. Estávamos a uma quadra da escola, bebendo, vivendo adoidado [risos]. E tivemos a ideia de gênio de ir até o correio e mandar um telegrama pra escola dizendo: “Estamos bem”.
“Se para mim é difícil entender a internet, imagina para os mais velhos”
Qual foi seu primeiro contato com a esquerda? Lembro de duas coisas marcantes. Uma foi o primeiro menino de rua que eu conheci, o Fábio, que casualmente é o primeiro negro de que eu me lembro também. O Rio Grande é um estado muito branco, né? Foi em Pedro Osório, eu tinha 8 anos. Ele era uma criança que nem eu, e a gente brincava de pega-pega, polícia e ladrão. Um dia, a gente ficou brincando até mais tarde e, na hora de ir pra casa, ele disse que não tinha pra onde ir. Foi o primeiro choque horrível de realidade, o fim de um capítulo. E o que mudou a minha vida foi a forma como a minha mãe me explicou aquilo.
O que ela disse? Que não era normal. Talvez a maior parte dos adultos estraguem o mundo quando dizem para as crianças que aquilo é assim mesmo e ponto. Minha mãe não me disse isso, então talvez ela ali tenha feito eu ser quem eu sou.
E a outra coisa? Foi um professor de história meu da quarta série, o professor Waldon, que passou uma aula inteira explicando por que o Brasil não tinha sido descoberto. Ele falava: “Olha, gente, não chegaram aqui e tinha um pano sem nada embaixo. Tinha gente”. E eu: “Uau! Tinha gente! Que falsidade esses portugueses”. Eu tinha 9 anos.
Quem ensinou você a ser boa de debate? Debater é algo que a gente aprende na vida. No início eu tinha a ansiedade de querer ter resposta pra tudo, aquela resposta automática. Hoje aprendi a parar, a ouvir, a ter calma. E só depois de cinco eleições, olha que louca, fui fazer o meu primeiro media training. Óbvio que hoje eu sou melhor do que quando entrei na UNE. Faço política já há 14 anos, então... Eu sou melhor hoje, né?
Você sempre trabalhou com temas ligados à juventude, como meia-entrada e regulamentação da internet. Os parlamentares mais velhos têm dificuldade em entender isso? O Congresso é analógico, as pessoas que estão lá são analógicas, as leis foram feitas num tempo em que o mundo era analógico. Se é difícil pra mim, que nasci em 1981 e domino o uso da tecnologia, imagina pra alguém que não domina. Evidentemente um deputado mais velho tem muito mais problema que eu pra entender a lei. Mas eu também tenho, e eu estudei dois anos pra conseguir entender razoavelmente o Marco Civil da Internet.
Qual é a base dessa lei? É a proteção do usuário. [O Brasil] É o único país do mundo que pensou que existe usuário de internet. Muito louco dizer isso, né? Eles só pensam em proprietários de bens. Os outros países só pensam em quem é dono do livro. Dane-se o livro, eu quero saber os meus dados, gente! Aqui dentro [do celular] tem o e-mail pro meu namorado...
Falando em namorado, no ano passado, você tinha planos de casar se perdesse a disputa pela prefeitura. Você perdeu e... É, na verdade o que aconteceu foi uma separação. Ano passado comecei meu novo namoro.
Há quanto tempo estão juntos? Oito meses. Ele é daqui [de Porto Alegre].
Onde você mora, afinal? Minha casa principal é aqui em Porto Alegre. Em Brasília, fico num hotel. Moro sozinha no meu apartamento aqui, meu [ex-]namorado morava comigo, mas agora estou meio que morando no apartamento do meu namorado novo.
A vontade de ter filhos está palpitando? Agora não... Tá só no namoro, então... É uma vontade que eu tenho. Mas se eu não tiver, não vai acabar com a minha vida. Alguns anos atrás eu pensava que minha vida seria uma tragédia se eu não fosse mãe. Hoje acho que transformo o mundo num lugar melhor pros filhos dos outros, em geral. Então não é mais aquela coisa de “oh, se eu não for mãe...”.
Como foi assumir o relacionamento com o José Eduardo Cardozo [atual ministro da Justiça, com quem Manuela namorou por três anos]? Hoje, olhando para trás, me dou conta que foi um gesto de muita ousadia minha. Mas eu também acho que se tivesse de fazer aquilo escondido, pra quê? Vejo que eu fui a primeira pessoa que admitiu namorar um colega do Congresso, né? Acho que em tantos anos de Parlamento não devo ter sido a única.
Se sentiu julgada? Claro. Eu não fiz a opção de ser famosa, não sou uma atriz. Então tive que aprender a lidar com isso muito nova. Eu fui muito machucada por isso... Porque eu era uma menina, gente! As pessoas são, primeiro: muito machistas, e julgam, né. Acho que foi uma das decisões mais corajosas que eu tomei, porque não era só admitir que eu namorava um colega meu. Era admitir que eu namorava um colega meu de outro partido, bem mais velho, de outro estado, e isso no Rio Grande do Sul é muito chato. Soa estranho pra quem é de fora, mas é uma chatice. E tem piada, comentário de corredor... As pessoas são muito cruéis com a vida dos outros. Fizeram charge, matéria, “Manu, a sedutora”, parecia que eu era uma gângster. São as coisas que fazem com as mulheres que fazem política. Nunca vi isso com homem.
Quando já estavam separados, você falou no programa CQC que o ministro não tinha sido fiel. Expô-lo assim foi algum tipo de troco? Não, foi uma piada! Me dou superbem com o Zé Eduardo. Na verdade eu sou muito debochada, né? E esqueço como o mundo é podre. Aquilo virou uma bola de neve, parece que a Dilma foi falar com ele. Então ele veio me dizer: “Que absurdo, como é que tu fez aquilo? A Dilma me cobrou” [risos]. A gente é muito amigo, eu me dou bem com todos os meu ex. Sempre namorei por muito tempo, dois, três anos...
"Aprendi com os meus irmãos a nunca ficar isolada. Quando um brigava com os quatro, se dava mal"
Hoje, qual a parte mais difícil em ser uma política mulher? A conciliação da vida privada com a vida pública. Tenho estudado muito isso. Poucas mulheres de poder têm vida privada. Elas majoritariamente abrem mão. E eu comecei muito cedo, com 23 anos. Então essa é a minha luta, eu luto para ter uma vida minha. Isso não existe pra eles [os homens do Parlamento]. Ninguém fala se eles casaram, se separaram, se cortaram o cabelo, se engordaram ou emagreceram...
Vê isso mudando? Eu vejo as mulheres que chegaram lá trabalhando muito para isso mudar, muito. Não estão dispostas a abrir mão completamente.
Mas ainda se sente muito cobrada num nível pessoal? Olha, chegou um momento, quando eu já tinha um tempo de mandato, que eu decidi ser a minha melhor juíza na vida pessoal. Eu sabia o quanto eu trabalhava e não era justo que eu não fosse feliz. Ponto. Eu lembro de um dia horrível, o dia em que minha avó morreu, em 2007. Era um dia de semana e eu voltei de Brasília para enterrar minha avó. E um cara parou [o carro] perto de mim e disse que nunca mais ia votar em mim porque eu estava em Porto Alegre numa quarta-feira [Manuela começa a chorar].
Já perdeu o controle num debate? Na Câmara teve uma única vez que eu saltei em cima de um deputado, o [Jair] Bolsonaro. Eu presidia a Comissão de Direitos Humanos e fiquei aguentando o debate todo, esperando minha vez de falar, porque é assim que é, ele é deputado... Mas nesse dia [em 2011] ele disse pro deputado Jean Wyllys que o pai dele tinha vergonha por ter um filho gay. Isso é repugnante, ultrapassa o que meu estômago consegue aguentar.
E o Marco Feliciano, o que se pode fazer com ele? A gente pode lutar para que a Comissão de Direitos Humanos nunca mais tenha um Marco Feliciano.
Costuma ficar remoendo as discussões depois? Tento não fazer isso, viu? Não dá pra voltar atrás, nem na política. Aprendi isso na terapia. Hashtag “fica a dica”: não adianta remoer. No máximo dá pra analisar e pensar: “Na próxima eu faço isso”.
De onde vem o seu jeito de fazer política? Aprendi dentro da minha casa a nunca ficar sozinha, no sentido coletivo de opinião. Nós somos cinco irmãos e vi que, quando um brigava sozinho contra os quatro, sempre perdia e sempre estava errado. Porque não existe como uma maioria estar errada contra uma pessoa isoladamente. Aí esse um tinha que refletir. A gente brinca: “Põe o rosto na parede, para e pensa”. Na política me perguntam: “Por que tu nunca está isolada?”. Isso foi uma lição que os meus quatro irmãos me deram.
“Acho que, em tantos anos, não devo ter sido a única a namorar um colega”
Hoje, aos 31, você é líder de bancada. O que mudou? Tenho muito mais influência do que tinha antes. Dois anos atrás eu tinha consciência do que eu ia votar ou não, hoje em dia eu tenho condições de influenciar o que a Câmara dos Deputados vai votar ou não. Que são duas coisas importantes, né? E eu estou entre os 12 que decidem isso junto. Quando a gente é deputado sem ser líder, é quando a gente mais defende a opinião. Quando vira líder, é o contrário. Se quero que algo chegue no Plenário, não adianta chegar gritando. Posso gritar e bater na mesa, mas grandes coisas. Eu preciso ter sete [votos] pra ir pro Plenário. Tenho que construir a maioria.
No combate da violência contra a mulher, acha que a ação do governo melhorou? Melhorou. Só que, entre a lei e a vida real, existe uma desproporção de investimento. O Brasil tem uma legislação ótima, a Lei Maria da Penha é revolucionária. O Congresso aprovou essa lei, só que é também o Congresso que aprova o orçamento. Então... Como vai viabilizar a delegacia?
E na cabeça das pessoas, o que precisa mudar? A tendência a culpar a vítima pelo preconceito ou pela violência que ela sofre. Esses dias eu postei uma denúncia de estupro, aquela do pastor Marcos Pereira, do Rio de Janeiro, que eu tinha denunciado quando era presidente da Comissão de Direitos Humanos e levou dois anos para ser investigada. Aí comentaram: “Garanto que gostava”. As pessoas não entendem a complexidade do estupro, a vergonha que dá, a humilhação. Não entendem como isso pode acontecer no Brasil, um país tão permissivo.
Como assim? O Brasil não é um país que tenha a violência declarada, como são os Estados Unidos, e isso torna a coisa, por melhor que seja o nosso país, mais complexa. Nosso povo é generoso e não se odeia, tem uma sexualidade aflorada, é fantástico. Só que aí as pessoas confundem tudo e pensam: “Se aconteceu com essa mulher, é porque ela queria”. E também existe uma tolerância muito grande com o machismo, com o fato de tratar a mulher como um objeto. O que faz alguém achar que é dono de uma mulher a ponto de matá-la porque ela não transa mais com ele? É o padrão da mulher-objeto.
Estamos falando também de violência doméstica, então. Sim, é aquela história: “Eu não sei pelo que estou batendo, mas ela sabe pelo que está apanhando”. Ao mesmo tempo em que o cara diz isso, os familiares questionam por que ela não denunciou na primeira vez. Todo mundo culpa a mulher, e ela se vê numa teia de desproteção. As pessoas não conseguem entender a complexidade da violência. Como é que é tomar um soco na cara do cara que tu gosta? Não é igual a tomar um soco na cara na rua.
Na prática, qual é a dificuldade de fazer essas questões avançarem? Hoje os assuntos da mulher são assuntos de direitos humanos. E o Congresso tem se tornado mais tímido em relação aos direitos humanos nos últimos anos. Mais conservador mesmo. Perdemos muito a coragem de enfrentar esses assuntos.
“Desconfiaria de mim se quisesse ser presidente. Não gosto de pessoas ambiciosas”
Falando em direitos humanos, a Dilma não levantou o tema da descriminalização do aborto nem com 70% de aprovação. O que acha disso? Não acho que seja um crime a presidenta Dilma não tratar disso. Ela é mulher e isso será usado contra ela, porque ela gera vida. A [deputada federal pelo PCdoB] Jandira Feghali foi colocada num cartaz em que ela aparecia com um feto na mão, porque defendeu o aborto de fetos anencéfalos. Então eu prefiro não falar sobre isso, porque é sempre usado contra nós. E tenho um agravante que é não ter filho. Várias vezes inventam que eu fiz, entendeu? Mas tu quer muito que eu fale?
Quero. A primeira questão pra pensar sobre o aborto é que nenhuma mulher faria um aborto por opção. Acho que todas as mulheres, absolutamente todas, são contra o aborto. Eu nunca escondi de ninguém o grande sonho da minha vida de ter um filho. Então, eu, Manuela, não faria um aborto. Mas acho um absurdo que um país como o Brasil tenha 150 mil mulheres que morrem em clínicas clandestinas, enquanto as mulheres ricas não passam por isso. Acho que é hora de o Brasil enfrentar esse assunto como uma questão de saúde pública. As mulheres merecem ser tratadas dignamente.
Quem tem que colocar isso na mesa? Acho que quem não está mais no poder, que não está disputando eleições. O maior serviço que o FHC prestou depois de deixar a presidência foi ter tido a coragem de tratar do tema das drogas. Se ele fosse jovem, seria tachado de maconheiro, mas a idade dele confere uma seriedade sobre o assunto. Esses temas são tratados sempre de forma rebaixada nos períodos eleitorais por causarem grandes emoções nas pessoas. Acho que, infelizmente, num país como o nosso, um homem ou alguém que não esteja na disputa eleitoral [deveria colocar o assunto do aborto na mesa].
Uma pergunta para a comunista: como conciliar comunismo e consumo? Primeiro que eu não vivo no comunismo, né? Vivo no Brasil, um país capitalista. O comunismo nunca existiu. O mundo que eu quero ver, se der tudo certo enquanto eu viver, é um mundo capitalista, minimamente desenvolvido, mas justo. As pessoas acham que o comunismo é a defesa da pobreza, isso é uma estupidez absurda, né? As pessoas confundem e acham inclusive que as mulheres militantes de esquerda têm que fazer um voto de feiura. Eu nunca defendi isso. O que eu defendo é que as pessoas tenham condições dignas de vida.
A militância condena a vaidade? Tem gente que romantiza o período da ditadura. Mas, no meu partido, nunca sofri com isso. No período da ditadura militar, os militantes tinham a vida que podiam ter. Acha que correndo da tortura, com o napalm da Guerrilha do Araguaia, as pessoas iriam ao salão? Tem gente que idealiza, acha aquele período bonito, mas não foi. Foi duríssimo. Eu convivo com os militantes mais velhos, que lutaram pela liberdade, o que a gente deve a eles é admiração e respeito. Essa é uma crítica que eu escuto muito: “A essa hora onde está a Manuela? No salão?”. Sim, acha que eu vou ficar feia?
Que planos tem para o seu futuro na política? Estou vivendo muito o dia de hoje. E tomei uma decisão: vou disputar minha última eleição pra deputada federal. Já tenho dez anos de mandato, acho que... Enfim, essa é a minha decisão do momento.
Quer ser presidenta um dia? Não, hoje não. Eu desconfiaria de mim se quisesse isso. Acho que a política combina com sonhos de transformação da sociedade, não com ambição pessoal. Particularmente, não gosto das pessoas ambiciosas.