Dormir ao seu lado é sempre um prazer. Mas algumas noites são mais frescas do que outras
Eu vi que a noite seria longa assim que cheguei em casa e fui recebida com a frase: “Estou muito gripada. Não vai dar para dormir com o ar-condicionado ligado”.
Há anos você conhece meu apego pelo poder do ar-condicionado e, depois de alguma negociação, até permitiu que eu ligasse o aparelho todas as noites, insistindo apenas para que comprássemos um umidificador, já que seu nariz fica muito seco e você, sempre que isso acontece, que é com frequência diária, acorda amaldiçoando a falta de umidade do quarto por culpa do ar-condicionado, como você gosta de repetir entre sete e oito da manhã, quase todos os dias. Assim, o umidificador foi trazido para morar em nosso quarto – o que diminuiu sensivelmente as reclamações em relação ao ar-condicionado.
Por isso, e porque conheço a força de uma sentença, apenas balancei a cabeça como quem concorda. E ainda verbalizei a obediência dizendo “claro, claro”.
Foi assim que, mesmo sob uma temperatura que beirava os 50 ºC, deitamos sem ligar o aparelho que teria deixado o quarto como a antessala do paraíso. Você dormiu quase imediatamente, e eu sei disso porque sua respiração mudou antes mesmo que eu começasse a suar, e eu comecei a suar em menos de 30 segundos.
A fim de sonhar um pouco com a brisa que ainda não entrava pela janela, adotei a atitude de não me mexer. Assim, imaginei, estancaria o suor e, quem sabe, conseguiria dormir. Você se moveu uma única vez, e foi para puxar a coberta sobre seu ombro, sinalizando que não estava dando bola para os 60 ºC de temperatura do quarto.
Comecei então a lembrar das primeiras noites naquele apartamento tão pequeno e quente. Fazíamos amor até o dia nascer e suávamos torrencialmente. Não havia ar-condicionado, apenas um ventilador que não resolvia nada. Interrompíamos nosso desespero carnal apenas para tomar litros de água. Acho que passei uns seis meses sem dormir, alimentada da paixão mais intensa e animal que já experimentei.
Estado líquido
Agora, quatro anos e duas casas depois, estou olhando para o teto, respirando lentamente para tentar parar de suar. Ao meu lado, você dorme fazendo aquele barulhinho que sempre me deixa com vontade de te beijar no meio da noite. Mas não hoje, porque estou tentando evitar me mover.
E então começa a chover. Fosse eu minimamente religiosa, teria agradecido a Deus pela graça alcançada. Com a janela escancarada, o vento, enfim, entra. Eu, finalmente, pego no sono. E sei disso porque, quando acordo, no meio da noite, você está em pé do meu lado da cama, como uma assombração.
– Por que você está fechando a janela? – pergunto, tentando manter a calma.
– Você não viu que está chovendo? – responde você, quase tão seca quanto o quarto depois de uma noite com o ar ligado.
Sim, eu tinha visto e só não saí pulando como um pardal da manhã pelo quarto porque meu objetivo era dormir antes de o dia nascer.
Não tenho tempo para a réplica porque você vai ao banheiro. Mas penso: “Se ela fechou a janela é porque vai ligar o ar-condicionado, claramente”. Só que você volta para a cama e simplesmente deita. Em choque, tento questionar a atitude insana, ainda que docemente:
– Qual a ideia? Deixar a janela fechada sem o ar ligado?
E é então que sua fúria verbal passa como um raio pelo quarto.
– Ideia? Não tem ideia nenhuma! Estou gripada, sem respirar direito. Não tem ideia!
Recolhida ao meu lado da cama, tento manter a calma porque, é evidente, você perceberá que a temperatura do quarto, sem ar e com a janela fechada, vai bater os 100 ºC. E, diante dessa constatação, vai ligar voluntariamente o aparelho. Por isso, é em estado de terror que noto sua respiração funda – você dormiu outra vez.
O grande milagre é que eu também durmo. E eu só sei disso porque acordo, ainda de madrugada, com você me chamando.
– Você não está com calor?
Com calor eu estava quando deitei. O que sentia naquele momento é o que deve sentir um pedaço de ferro minutos antes da liquefação. Mas, ainda assim, eu tinha conseguido dormir até você me chamar.
“Vou abrir a janela”, você avisa. A chuva lá fora tinha se transformado em dilúvio e, como a janela fica do meu lado da cama, era natural que, ao abrir a janela, chovesse em mim. Mas não consigo dizer nada disso e deixo você levantar e abrir a janela.
Como previsto, começa a chover em mim. Mas, ainda assim, isso é melhor do que o calor de antes. Então, mais uma vez por milagre, durmo.
E eu sei disso porque ouço, ainda de madrugada, você me chamando. Decido fingir que estou em sono profundo – e certamente estaria se minhas costas não estivessem tão molhadas – e só respondo quando ouço você dizer meu nome pela décima vez.
– Tem água do seu lado? – você quer saber.
Tem água nas minhas costas, mas, por instinto de sobrevivência, não dou essa resposta. Em pânico, percebo que a garrafa d’água não está ali.
“Vou buscar pra você”, digo, na esperança de que um gesto tão altruísta faça brotar em você a consciência de que só o ar-condicionado nos salvará. Mas você está impressionantemente ativa para alguém tão gripada e, antes que eu possa secar minhas costas e levantar, já está de volta com a garrafa d’água.
Mais uma vez, deitamos, e eu, mais uma vez, consigo dormir. Só sei disso porque acordo, ainda de madrugada, com você me chamando. Decido ignorar o chamado. E você ignora minha ignorada.
“Vou pegar as cachorras”, você avisa. “Elas têm medo de trovões”, justifica.
Pensando agora com clareza, essa era a única possibilidade de deixar a noite ainda mais calamitosa. E as duas cachorras se somam ao calor e à chuva e pulam na cama, pisando em minha barriga, em minha cabeça, em qualquer chance de dormir algumas horas. Uma delas se coloca no meu travesseiro e ameaça me morder quando tento tirá-la dali. Com o olhar, você dá razão à cachorra. Sou salva pelo despertador.
Você sai da cama sem me dar um beijo, e eu queria um beijo não apenas porque seu beijo é o que me faz existir, mas para que você notasse como eu estava salgada de tanto suar.
Devo ter dormido enquanto você tomava banho porque quando abri os olhos você estava em pé, de costas para mim, completamente nua, revirando calças no armário.
Há quatro anos não me canso de olhar para o seu corpo com a devoção que só os beatos têm por seus santos. Não há no mundo um corpo mais perfeito, mais atraente, mais tentador. Seu cabelo preso em um coque, as costas largas e douradas, a cintura perfeita. Tudo a serviço da minha paixão e da minha obsessão, que só fizeram aumentar desde as noites em que não parávamos de suar e de fazer amor naquele apartamento minúsculo.
Você me vê e sorri. Abaixa e me beija, sussurrando desculpas pela noite maldormida. E eu entendo que posso passar mais 100 mil noites como essa porque tudo o que me importa é abrir os olhos e ver você, todos os dias, do meu lado.
A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br