Com seus quadrinhos autobiográficos e feministas, Sirlanney Nogueira faz sucesso na internet
A cearense Sirlanney Nogueira, 30, não esconde: através de seus quadrinhos machuca e se deixa machucar. Com os desenhos, é autoral, tanto que às vezes só ela mesma entende as mensagens que carregam. "Faço as tirinhas para narrar minha vida, meus sentimentos e para não enlouquecer", entrega.
Nascida e criada na pequena Morada Nova, região do Vale do Jaguaribe, desde 2008 escolheu a cidade do Rio de Janeiro para viver. Foi na mudança para a capital que trocou a faculdade de moda pela de artes plásticas, para ela: "um negócio muito mais útil". No entanto, sua relação com os tracinhos começou bem antes, na infância. Aos seis anos, assim que aprendeu com o pai a desenhar o corpo feminino a partir do formato de um pote de barro, fazia rabiscos de mulheres nuas para os garotos da escola, "aqueles que sentavam no fundo da sala".
Hoje, ilustrar é sua profissão e maior meio de expressão. Com o pseudônimo Magra de ruim, Sirlanney trata de amor, sexo, feminismo e redes sociais. O nome, ela escolheu para ironizar as piadas que recebia quando criança e adolescente. Ser muito magra era motivo de humilhação e vergonha. A cearense, mesmo quando trata de ficção, é a principal personagem dos suas próprias histórias.
Como e quando começou sua relação com o desenho? Recorda da sua primeira lembrança com ele? É difícil lembrar porque toda criança gosta de brincar com papel e tinta. Nas minhas memórias mais distantes, apareço criando uma relação afetiva com os lápis de cores.
Você escolheu fazer um trabalho autobiográfico. Por quê? Acho que tem a ver com minha veia artística. Antes de começar a fazer quadrinho, eu já tinha um blog onde eu transformava minha vida em ficção, era uma época em que todo mundo tinha um blog pra isso. Eu acompanhava obsessivamente os blogs da Natércia Pontes (minha conterrânea), da Clara Averbuck e da Ana Paula Barbi. Isso teve peso na minha escrita. Depois passei um tempo apaixonada por todos escritores autobiográficos, Henry Miller, Bukowski, John Fante, Kerouac, etc. Já era assim que eu gostava de contar histórias, depois o contato com os quadrinhos autorais, me fez perceber que eu podia usar minha habilidade com desenho para expressar essas mesmas histórias de outra forma.
Seus desenhos e quadrinhos são claramente feministas. Fico muito feliz por alguém dizer isso, porque na verdade eu gostaria de ter lido mais sobre o feminismo do que li até hoje. Quando eu estava na minha primeira faculdade, eu me achava muito feminista, até que o professor da disciplina de História da Cultura Ocidental, me puxou a orelha e me desafiou a debater com ele, querendo dizer que eu precisava estar bem embasada se quisesse começar a falar sobre isso. Era uma posição que não dava para adotar apenas de forma empírica. Foi um conselho valioso que passo adiante. Li alguns textos que me foram úteis, como "Mulher, objeto de cama e mesa", de Heloneida Studart, que foi escrito na década de 1970, mas ainda acho bastante atual. Outros textos são as zines das feministas pelo Brasil, como o No Make Up Tips, das Riot Grrrl, um movimento lindo que vale a pena se informar.
Agora, quando começou, ou como aconteceu para mim? Não sei, eu acho que a vida me aconteceu e me impeliu ao feminismo. Vários fatores me levaram a questionar os valores da sociedade, na medida que eu ia compreendendo sobre minha existência e posição no mundo. Nasci mulher, filha da amante, fiquei grávida aos 19 anos... Embora tenha sido opção minha não abortar, fui estigmatizada pelos moralistas da boa sociedade, que julgam e punem quem engravida e é solteira. Tudo isso pelo que passo, meus questionamentos, minhas angústias, coloco no meu trabalho, para aliviar um pouco o coração, mas principalmente para dar aos outros essas dúvidas e esses sentimentos.
Quem ou o que te inspira a criar? E quais são os artistas que você mais admira e por quê? A lista de inspiração é enorme, vai de Botticelli, William Blake, Os Pré-Rafaelitas, Frida Kahlo, até escritores de várias épocas e nacionalidades. Cinema, música, até as meninas adolescentes que publicam quadrinhos na internet hoje em dia. Tem alguns nomes dos quadrinhos autobiográficos que significam muito pra mim, eles são: Gabrielle Bell, Power Paola, Marjani Sattrapi e Allan Sieber (que nessa lista fica meio sobrando, mas que foi fundamental pro meu estalo para os quadrinhos). Também admiro e sofro muita influência dos meus amigos, que me ensinam o tempo todo, tanto direta como indiretamente, e são responsáveis pelo que faço hoje, principalmente o Diego Sanchez, a Morgana Mastrianni, a Beatriz Lopes (Zine XXX) e a Gabi (Lovelove6), também a galera dos coletivos Batata Frita Murcha e Loki. Acho massa a cena autoral dos quadrinhos alternativos que está rolando no Brasil, eu quero ler todos! Gosto de consumir os livros, zines e revistas representados pela Prego, Samba, Gibi Gibi e Beleléu. Da minha estante gosto muito do Sr. e da Sra. Crumb, Crepax, Daniel Clowes, Will Eisner, Scott McCloud, Lourenço Mutarelli.
"A internet é o meio fundamental, é a nova era. Sem ela eu não seria nada. Ela tira os intermediadores entre mim e o público"
Como a internet te ajuda com a divulgação do seu trabalho? A internet é o meio fundamental, é a nova era. Sem ela eu não seria nada. Ela tira os intermediadores entre mim e o público. É como aquele papo: eu não preciso ir até a igreja para falar com Deus. Antes do Facebook, eu ficava imaginando as pessoas mandando o link do meu blog pelo MSN. Agora eu vejo que elas compartilham e isso basta. A quantidade de like não é sinônimo de que o quadrinho é bom, eu sei disso, às vezes parece ser exatamente o contrário, mas nem sempre é. Já me aconteceu de escrever um quadrinho ruim, e pensar que ele seria bem aceito, porque era piegas (embora sincero), e isso não aconteceu, e de achar que não seria compreendida porque estava fazendo um quadrinho muito louco ou bizarro, e foi exatamente o quadrinho de mais sucesso. Aprendi a não subestimar meus leitores. Sem falar que os likes também são importantes para saber que o próximo quadrinho vai ser lido e eu acho que isso é o mais importante para um autor. Imagine que triste escrever uma novela para telespectador nenhum.
Por que Magra de ruim? Eu tive muito problema de aceitação com meu corpo, quando era criança e quando jovem. Nasci muito abaixo do peso e permaneci assim até hoje. Das brincadeiras na escola, "magra de ruim" era o apelido mais doce de ouvir, geralmente era "seca dos 15", "seca do cão", nesse nível. Não me enquadrar tem a ver com o que eu sou hoje, com a minha personalidade e estou feliz por ser assim. Quando eu criei o blog, em 2003, foi quando eu saí da adolescência e passei a me aceitar mais como sou.
E sobre o Zine XXX? Eu e a Beatriz (a idealizadora do projeto) já tínhamos conversado sobre fazer alguma publicação de nós duas e acho que ela tinha interesse de fazer isso com outras amigas também. Numa tarde dessas, ela me ligou, com uma voz super animada, dizendo algo como: "Olha Si, nós duas estávamos enrolando muito, daí eu pensei, porque não com todas as quadrinistas do país todo, e com uma pegada feminista?". Depois falou que tinha criado um grupo chamado XXX, que já tinha várias garotas.
Li a respeito de um projeto seu com a Clara Averbuck. Como já disse, a Clara estava desde o primeiro momento quando comecei a desenvolver minha narrativa na escrita. Ela me influenciou tão fortemente, que quando se viu, anos depois, nos meus quadrinhos, me procurou. Esse foi um grande acontecimento pra mim, encontrar Clara Averbuck comentando alguma coisa como "você é foda!" num desenho meu. Quando vi, já tinha um monte de texto dela na minha caixa de entrada, histórias que ela não tinha tornado públicas ainda. Eu completamente pirei, porque dava muito pano pra manga. Agora estamos nesse ponto de produção, porque ela teve uma ideia muito linda: eu costurei um livrinho e entreguei para ela alguns dias depois do Natal e antes do ano novo, porque estávamos coincidentemente no Ceará. Agora ela tá escrevendo direto nesse livrinho e depois vai me devolver ele, para que eu possa pintar, ilustrar os textos, fazer quadrinhos em cima, etc. Então se trata desse objeto.
Cheguei em um zine seu, o SddS. Você fala de sexo e amor nele, bastante. Também é autobiográfico? A maioria é autobiográfica sim, o SddS é completamente. Por mais ridículo que pareça, foi fruto de algo legítimo brotado a partir do meu coração. Sou obviamente romântica, o que não quer dizer que não compreendo que o romance se trata de uma criação humana, mas tão poderosa, que ferra o inconsciente coletivo até hoje. Escrever sobre sexo tem a ver com as referências que povoam meu universo, tais como: Henry Miller, Anais Nin, Crepax, Carlos Zéfiro, Georges Bataille, a Bíblia Sagrada, etc. E também com o fato de que, desde que eu posso lembrar, sempre fui uma criaturinha muito sexual. É quase um absurdo que uma mulher se identifique assim. Mas tome essa sentença "desde que eu posso lembrar, sempre fui uma criaturinha muito sexual" e imagine ela saindo da boca de um homem. Vê, a conotação se torna outra, não é? É fato que para as mulheres é vedada sua expressão sexual. Muitos homens, hoje em dia, ainda acreditam que as mulheres não sentem prazer com o sexo, ou que sentem menos e que se ela sente igual a um homem é doente ou está possuída. E tudo isso vem disfarçado de cuidado, de nos tratar como bibelôs, eu não ligo de ser tratada como um enfeite de sala, desde que esse tratamento não comece a me podar. É claro que eu não sou algo tão frágil, se eu cair não vou quebrar, é sobre isso também que estou escrevendo quando falo de amor e de sexo. Minha família acha horrível, mas eu acho que você não precisa ler se tem vergonha. Acontece que todo tipo de garota se identifica com os quadrinhos mais "vergonhosos" que escrevo. Fica um monte de sem vergonha se marcando, marcando as amigas, dizendo "eu" "eu" "tão eu!" Ou seja, né: desculpa seus machistas/moralistas de uma figa, deixem meu sexo passar!
Abaixo, uma das animações de Sirlanney, Odorica a 200km por hora, um teaser para o quadrinho Vingança de Odorica.
Vai lá: sirlanney.tumblr.com // https://www.facebook.com/pages/Magra-de-Ruim/111974632170328?fref=ts