Livres pensadores

por Antonia Pellegrino
Tpm #136

Escritores deveriam ter compromisso somente com seu pensamento

Muitos escritores têm compromissos com seus leitores, quando deveriam ter compromisso somente com seu pensamento

À época ainda havia o segundo ano e era lá que eu estava, durante o recreio do colégio Bahiense, a conversar com o professor de história sobre meu avô, o psicanalista Hélio Pellegrino, quando o sujeito disse: “O que mais me impressionava era o fato de ele ser um livre pensador”. Não ficou claro sobre o que ele falava. O óbvio nos leva a crer que o pensamento sempre seja livre. Que pensar na contramão e ter a coragem de dizer o que se pensa assim seja simples. Que sustentar posições antipáticas por acreditar nelas seja o corriqueiro. Mas não é. Talvez somente aos meus olhos virgens das complexidades do mundo.

Sobretudo em momentos extremados, como o ocorrido no Brasil a partir de 1964 – ano em que começa a nossa ditadura –, quando meu avô ganha notoriedade por suas posições aguerridamente democráticas, por sua participação ativa tanto na vida intelectual brasileira quanto na vida política, prática, das ruas, passeatas e palanques, apesar do risco de ser preso ou perseguido, ele não hesitou em fazer do pensamento sua trincheira pela liberdade. Hoje, no Brasil das manifestações, ninguém é preso por pensar fora da caixa, mas por quebrar a Caixa.

Neste contexto extremado, finalmente ficou clara para mim a fundamental importância do livre pensamento. Muitos escritores têm compromissos com seus leitores, quando deveriam ter compromisso somente com seu pensamento. Jornais têm compromisso com seus interesses, quando deveriam ter compromisso com a informação. O público quer ver suas ideias confirmadas nas páginas, e não questionadas. Repórteres saem às ruas atrás de verdades elaboradas em redações. Há pouco espaço, seja em nível público ou privado, para mudanças de posição, para o dissenso e a dúvida.

Renovação

E, no meio desta ebulição de fatos de destino imprevisível, me emociona profundamente a tarefa diária do livre pensar que acompanho com olhos e ouvidos atentos, por ser casada com um livre pensador. Por sorte, a vida colocou outro livre pensador em meu caminho. Dividir os dias com alguém como Francisco Bosco é renovador a cada despertar. Acompanhar sua angústia até equacionar uma ideia em sua cabeça me encanta tanto quanto sua capacidade de abandonar esta mesma ideia por outra que lhe pareça mais verdadeira. Ver a forma como ele mobiliza toda sua inteligência para iluminar o que os outros não conseguem ver. Ler suas poderosas argumentações feitas com estilo elegante me enche de orgulho. E descobrir, no texto, uma ideia que ele nunca compartilhou comigo é quase como conhecê-lo de novo, e me apaixonar de novo, e amá-lo de novo.

E é pra isso este texto, pra dizer o quanto eu o amo e admiro, desde que a gente se conheceu, oito anos atrás, mas sobretudo nos dias de hoje.

*Antonia Pellegrino, 32 anos, é ro­te­irista e escritora. É dela o roteiro da série Oscar Freire 279. Ela ganhou o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro pelo roteiro do filme Bruna Surfistinha. Seu e-mail: a.pellegrino@terra.com.br

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