Meu rebento se deu conta de que eu também era filha, e me estendeu a mão
E eis que de repente ele ouve David Bowie e John Lennon e pergunta se estou melhor. Aquele garoto que se escondia do barulho dos fogos, cujo coração disparou com o primeiro Guerra nas estrelas, com quem fiquei dois meses fazendo a adaptação no colégio. O mesmo que aos 3 anos proferiu com espantosa maturidade: “quem tem medo não olha”.
A professora havia se fantasiado de lobo mau em uma apresentação de teatro na escola e, mesmo tendo acompanhado os ensaios, e sabendo portanto de toda a farsa, João não hesitou em ser quem era.
E era assim: gostava de trem, e não de cantar parabéns; enfrentava montanha-russa, mas não ia ao teatro; aceitava viajar para a praia, mas não queria a areia. Uma vez começou a chorar ainda no elevador quando chegamos em uma festa com animador, e até hoje não sei se por conta dos altos decibéis ou pela angústia de ser obrigado a participar das atividades propostas pelos “tios”. Barulho, aliás, sempre foi uma questão, e só foi ouvir música outro dia, a partir do Qual É a Música? que jogamos nas viagens de carro do último verão.
E o sono então? “Mãe, dormir é como ser rebaixado pra terceira divisão.” E dá-lhe histórias e explicações. Esgotei o repertório que não tinha sobre infinito, Via Láctea e sentido da existência.
Pijama de dinossauros
João enfrentou bravamente a separação dos pais, as mudanças de endereço, a chegada do padrasto e do irmão, uma escola negligente e, sobretudo, minha inevitável inexperiência. Mas essa coragem disfarçada de medo que marcou sua primeira infância e o acompanha desde então encontrou agora um garoto de 10 anos que enfim subiu em seu cavalo. Quer crescer. Conversar. Fazer prova e dormir sozinho. E não mais com o pijama de dinossauros.
Eu fico feliz e triste. Sei que em alguns anos não serei páreo para tardes no boliche ou campeonatos de videogame com os amigos. Isso pra não falar das meninas...
Mas começo a desconfiar que estou diante de um companheiro. Eu, que tive um irmão que ouvia Police e João Gilberto, e um primo que me ensinou de Jarmuch a haicais. Eu, uma mulher de meninos, que antes mesmo de casar já tinha dividido estradas com meu pai, Otavio e Zé.
João me dá o prazer de juntar as pontas da história – e, o que é mais lindo, presta atenção nos outros e até na mãe. Aquela outra que é meio ele, que por sua vez era meio o pai dela, e que agora está meio triste porque ele morreu.
Meu rebento se deu conta de que eu também era filha, e me estendeu a mão. E eu, na metade da viagem e com os primeiros sinais apontando no rosto, realizo que preciso produzir o máximo de lembranças na pele dos meus garotos: casa na árvore, pescaria, queimado na lage e cachorro correndo.
Caio, João, Bento e a mulher que eu viro a cada dia. Com um olho nos meus pais e na minha juventude, e o outro nos homens que vão surgir desses meninos.
Meninos que ainda são meus, que um dia foram meus, que um dia usaram pijamas de dinossauros.
*Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com