Fragmentos de felicidade

por Redação
Tpm #77

Feijoada, macarrão, criança que muda de nome e fotos para a posteridade. É só uma tradicional festa de família. Vai encarar?

 
Nem todos os domingos são iguais. Por exemplo, o do Dia das Mães. Este ano, a matriarca resolveu que, em vez de sairmos para nos amontoar em um restaurante lotado da capital, iríamos fazer o almoço em sua casa, que já foi nossa, mas que hoje é apenas dela. E, se um dia fomos seis, hoje, somos 15. Quinze mais Manuela, o minúsculo maltês que meu irmão deu à mulher e que também foi ao encontro. No menu, feijoada. Ninguém entendeu muito bem quando a matriarca anunciou que não comeríamos massa, mas questionar sicilianos, ainda por cima quando um deles colocou você no mundo, é exercício encarado apenas em anos bissextos. Conformados, fomos para a feijoada.

– Eu não quero feijão!
Nem todos sabem das regras sobre confrontações com a matriarca. Especialmente aqueles que nasceram há quatro anos.
– O que você quer? – pergunta a mãe do menino.
– Macarrão! Macarrão!
Alguém, enfim, havia se manifestado.
– Eu também! – diz a de 7 anos.
– Eu também! – ecoa a de 2.

A tropa miúda estava iniciando uma sonora passeata por seus direitos gastronômicos e ancestrais. Como não existe mudança sem revolução, em meia hora, além do feijão, da couve, da farofa e da laranja, havia na mesa uma travessa com macarrão. Armados da coragem da ignorância, os pequenos haviam conseguido.
– Mãe! – diz o de 3 anos se aproximando de mim na mesa.
– Eu não sou sua mãe – explico.
– Eu sei – responde ele se esforçando para puxar a enorme cadeira e se sentar ao meu lado.
– Sua mãe está ali – aponto para o sofá da sala, onde minha irmã come com o prato no colo.
– Mudei de idéia, não quero mais minha mãe – diz ele, ajoelhando-se na cadeira, para ficar da altura da mesa, e levando o macarrão à boca.
– Francisco, venha comer! – grita a matriarca para o de 4 anos que brinca no quarto.
– Ele não se chama mais Francisco – explica a mãe.
– Não? – pergunto.
– Não. Agora ele se chama Hassanor.
– Hein?
– Hassanor, com H.
– Desde quando?
– Desde que ele chegou da escola e anunciou que a partir daquele dia só atenderia por Hassanor, com H.
– Hassanor, vem comer! – grito.
– Francisco, venha comer! – ignora a matriarca.
Hassanor aparece na sala, armado da espada do exército de Jedi.
– Não tô com fome – anuncia.
Hassanor é um rapaz corajoso, penso.
– Senta aqui, Francisco – ignora a matriarca.
– É Hassanor! Hassanor! – explica a mãe do menino.
– Francisco, sente aqui – ignora mais uma vez a matriarca, agora puxando uma das cadeiras da mesa.

Hassanor, então, faz cara de mau, executa um assustador movimento de luta, aponta a espada para a barriga da matriarca e, levando uma perna à frente, grita: “Ha!”. Quando penso que Hassanor vai, finalmente, me resgatar, ele se senta calmamente à mesa e começa a comer. – Hassanor! Você me iludiu – digo.
– Quero mais molho – responde Hassanor.
Minha irmã aparece na sala trazendo no colo a de 4 meses, que acordou da sesta. Vou até ela e começo a brincar. O choro é quase imediato.
– Você encarou ela? – pergunta minha irmã, balançando para cima e para baixo na tentativa de acalmar o bebê.
– Hein? – indago.
– Você encarou ela! Não encara que ela chora.
– Hein? – continuo.
– Não encara! Não encara!

Álbum de família
O choro pára. Vou ao encontro do de 3 anos, que já levantou da mesa e está brincando com os porta-retratos enfileirados na prateleira mais baixa da sala. Pego uma foto tirada pela matriarca há dez anos: eu, minhas duas irmãs e meu irmão.

– Quem é a mais bonita? – pergunto.
O menino me olha, olha a foto, me olha, olha a foto e aponta para a mãe.
– Olha direito, Marcelo! – exijo.
O menino me olha, olha para a foto e aponta minha outra irmã.
Saio e vou brincar com o neném, agora no colo da matriarca. E lá vem o bico que antecede o choro.
– Não encara! Não encara! – grita minha irmã, de pé em volta da mesa, enquanto se serve de torta de ricota.
– Foto! Foto! – chama meu irmão. É a hora do registro que ganhará um porta-retratos e um lugar na prateleira.
Primeiro, a matriarca e os sete netos. Depois, a matriarca, fi-lhos, cunhados e nora.
– Não vou! – anuncia o cunhado.
– Venha, Felipe! – demanda a matriarca.
– Não vou tirar foto sem a Tatiana – continua o corajoso cu-nhado, sabendo que, ao se referir à minha mulher, está entrando em campo minado.
– Onde ela está? – pergunta a matriarca.
– Com a mãe – explico.
– Foto! Foto! – grita a de 7 anos.
– Quer jujuba, Manuela? – pergunta a de 2.
O sobrinho de 15 anos ri, a de 2 oferece jujubas ao cachorro, que, apavorado, corre e late pela sala, a de 4 meses chora.
– Não encara! Não encara! – imploro.
Felipe, finalmente, entra na foto. Todos se amontoam no sofá. Clic. Clic. Clic. O Dia das Mães chega ao fim. Mas não sem o aviso da matriarca, quando já estávamos no elevador:
– Vou fazer isso uma vez por mês – anuncia.
O de 11 anos, levemente pálido, responde:
– E eu venho uma vez por ano, Nonna – diz isso e ri, agora levemente nervoso com a coragem súbita. Porque ele sabe que, no fim, acabará indo uma vez por mês. Nem que seja pelo macarrão.
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