Desvendar a moral de pessoas que convivem conosco amplia nosso entendimento sobre a alma
Você já fez alguma reforma? Refiro-me a construção e desconstrução de casas e apartamentos.
Já havia acompanhado por várias vezes meus pais refazendo nossos espaços. Mas é a primeira vez que eu faço isso. A começar pelos valores que se paga para adquirir objetos e contratar serviços que nunca são só aquilo que se pagou. Os prazos também nunca são os previstos. Senti-me desconstruída em meio a entulhos, pisos, tintas e muito pó, sem ter a mínima segurança e confiança no despreparo desta obra.
Esse sentimento me lembrou da época em que alugava um apartamento da zia (tia) Flora Bertine. Era um palazzo (prédio) na piazza D’ Uomo, esquina com via Dei Servi, bem no epicentro de Firenze, na Toscana, Itália.
A zia Flora era uma senhora baixinha de 80 e poucos anos, voz forte que frequentava a igreja diariamente. Vivia a declamar trechos da Divina Comédia e a contar histórias de Dante Alighieri e Beatrice. Exceto o meu apartamento, que era pequeno e no último andar (foi uma espécie de casa de criados), todos os outros eram suntuosos. A mais jovem moradora do edifício tinha 70 anos. Como o prédio era muito antigo e não tinha elevador, todos tinham que subir escadas e, para chegar ao meu apartamento, eu vencia 120 degraus. Quando comecei a receber minhas contas de luz estranhei os valores altos, mais zia Flora justificou que na Itália era assim mesmo. Todo mês eu pagava aquela fortuna. Tentei me entender com a companhia de luz, mas a conta estava correta. Um dia, conversando com um rapaz que havia conhecido, descobri que ele era eletricista. Comentei o quanto vinha pagando e ele se ofereceu para ir ao apartamento dar uma olhada. Concentrado, foi acompanhando fio por fio e, quieto, foi tirando suas conclusões. Até que me chamou para mostrar os caminhos dos fios e me deu a impressionante notícia de que eu pagava a conta dos apartamentos que pertenciam a ela, inclusive o dela. Descobri o formato afetivo daquela velhinha que dava bengalada nos “barboni” (moradores de rua) quando se acomodavam nos degraus da catedral. E ainda resmungava: “Via, via, via”.
Mudanças
Desvendar formas e procedimentos morais de pessoas que convivem conosco muito de perto faz ampliar nosso entendimento sobre a alma humana.
Esta passagem não me deixa esquecer de um cara casado com a irmã de alguém que já foi meu melhor amigo. Aquele mentiu, traiu e roubou sorrindo para mim todos os dias, pois gozava da minha confiança.
Por outro lado, temos as boas descobertas das maiores potencialidades dos grandes amigos. A minha amiga Maysa resolveu encarar a bucha de acompanhar a minha obra e me fazer mudar de casa ainda este mês. Portanto, graças a ela, na próxima edição desta revista você irá ler uma coluna de casa nova.
* Mara Gabrilli, 40 anos, é publicitária, psicóloga e vereadora por São Paulo. Fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP), é tetraplégica e foi Trip Girl na Trip #82. Seu e-mail: maragabrilli@camara.sp.gov.br