Filmando memórias

por Natacha Cortêz

No doc Vila Fiat Lux, Adriana Yañez conta a história de uma vila paulistana que resistiu ao tempo

No começo do século 20, a cidade de São Paulo vivia o auge de sua industrialização. As fábricas passavam a ocupar terrenos rurais às margens do centro, expandindo a cidade. Junto com a construção das fábricas, surgiam as vilas operárias. Nesse cenário foi criada, no bairro São Domingos, a Vila Fiat Lux: a vila operária dos trabalhadores da fábrica de fósforos Fiat Lux, com cerca de 160 casas.

No final da década de 60, a fábrica mudou de São Paulo e a vila passou a ser da prefeitura. As casas foram vendidas para uma geração de moradores que chegou no começo de 1970 e se mantem lá até hoje.

A diretora e roteirista de cinema Adriana Yañez nasceu e cresceu na vila. Aos 30 anos, e agora não mais moradora dalí, ela filmou o documentário Vila Fiat Lux, e revisitou as memórias mais doces e marcantes de sua infância e começo de vida adulta. São 23 anos de lembranças, resgatadas em um ano de trabalho. “Assumi minha memória como recurso para o curta, minha voz virou protagonista e narradora das histórias”, conta. Através da voz de Adriana, as histórias do lugar vão se mostrando. Encontros com quem viveu lá também renderam preciosos resgates.

“Do ponto de vista arquitetônico, hoje a vila é bastante transformada”, explica a diretora. A especulação imobiliária é um tema paralelo do documentário, a forma como as pessoas se relacionam com a cidade e o urbanismo é outro. "O lugar foi transformado pelos próprios moradores, eles escolheram reformar e diferenciar suas casas. Muitos permaneceram lá e não se veem fora de forma alguma. Mas muitas coisas mudaram, acho que cada vez mais o senso de convivência foi sendo mudado, juntamente com a estética do lugar”.

A chegada da geração que mora na vila atualmente aconteceu no contexto da ditadura militar no Brasil. Os moradores se organizaram criando uma política interna que representasse a todos. Pessoas de diferentes origens, gostos e crenças passavam a dividir o mesmo espaço e colocavam em pauta todas as decisões para serem tomadas coletivamente. Assim fundaram a Sociedade Amigos da Vila Fiat Lux, em 1974, criada para promover eventos e eleições, eleger representantes e fortalecer a voz da comunidade perante os órgãos públicos.

As imagens de arquivo reunidas dos acervos pessoais dos moradores permitem a reconstrução dessa trajetória. A história vai ganhando forma através de atas de reuniões, documentos oficiais, cartas trocadas com a prefeitura, circulares e jornais produzidos internamente – além de fotos e vídeos VHS. “É uma história que é de São Paulo, mas poderia acontecer em qualquer lugar do mundo. É um recorte tão miúdo, que chega a ser universal.”

Filmado todo em formato super 8, o curta mostra a transformação do bairro ao longo dos anos, tendo a observação da convivência como seu principal objeto. “O filme também fala disso, da troca da coletividade pelo individualismo. De como as pessoas deixaram uma coisa pela outra.”

Mas, ao final, diz Adriana, o tom que permanece, superando qualquer melancolia, é o da resiliência. "Seja pela força poética da memória, seja pelas práticas que se mantém entre os moradores, a Vila Fiat Lux ainda é mais comunidade que cidade."

Vai lá: Vila Fiat Lux foi selecionado para o Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro, onde teve sua estreia nacional no dia 2 de novembro. Agora, a equipe do filme segue o inscrevendo em outras mostras e festivais e pretende em breve lançá-lo em plataformas online. O documentário foi produzido pela bigBonsai e contemplado pelo edital História dos Bairros de São Paulo, da Secretaria Municipal de Cultura

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