O destemido ex-modelo divide seus sonhos entre a Paraolímpíada e as células-tronco
Novembro de 2009. Pela terceira vez, Fernando Fernandes contrariava os enfermeiros do hospital de reabilitação Sarah Kubitschek, em Brasília, e se pendurava no ferro da cabeceira da cama para se exercitar – mais precisamente, fazer barra. Era o terceiro leito que precisava ser trocado em duas semanas por ter o ferro quebrado ao meio. Depois de um mês de internação – e muita insistência – ele conseguiu o que queria: uma ida diária à academia.
Julho de 2009. Fernando estava com tudo pronto para passar uma temporada na Europa, onde firmaria a carreira de modelo: a campanha da Dolce & Gabbana, ao lado de Naomi Campbell e Claudia Schiffer – fotografada por Mario Testino –, finalmente seria lançada após longo ano de espera. Ele já tinha trancado a faculdade de Educação Física, doado a maioria de suas roupas e se desfeito do apartamento que dividia com amigos. Como abriria o desfile da marca na Semana de Moda de Milão, estava treinando forte para emagrecer e se adaptar aos padrões, já que seu físico de atleta, conquistado com mais de dez anos de boxe, contrastava com o exigido nas passarelas.
No dia 4 de julho, então, lutou pela manhã e correu 15 quilômetros no parque do Ibirapuera. Seguindo uma dieta rígida, almoçou frango grelhado e salada e, à noite, foi jogar futebol com o pai e amigos, no clube Indiano, em São Paulo. Mas só aguentou o primeiro tempo da partida. Na volta para casa, dormiu ao volante de seu Sandero preto e bateu em uma árvore na avenida República do Líbano – a 3 quilômetros de casa. Sem cinto de segurança – como de hábito – sua coluna girou na colisão e a vértebra T12 se rompeu. “Acordei com tudo branco, no hospital São Paulo. Todo mundo me olhava assustado. Eu estava bem, parecia que não tinha acontecido nada”, lembra. Poucos dias depois, percebeu que os estímulos que mandava para as pernas não respondiam. Tinha ficado paraplégico.
“Foi ali [no hospital] que minha cabeça fritou. Pensava: ‘O que vou ser na vida agora?’. Modelo, não dá mais. E achava que esporte também não daria”
Quando recebeu a notícia, Fernando acreditava ser possível desfilar em Milão em três semanas, mas teve que permanecer os dez dias seguintes imóvel, em leito zero. “Foi ali que minha cabeça fritou. Pensava: ‘O que vou ser na vida agora?’. Modelo, não dá mais. E achava que esporte também não daria”, diz.
Os médicos indicaram um psicólogo do hospital, mas ele dispensou; não conseguia se abrir com um desconhecido. “Minha terapia foi a Carol”, solta, se referindo à namorada, Carol Medeiros, 34 anos, com quem está desde abril de 2010 (nove meses após o acidente). A investida começou pelo Facebook, já que ela, apesar de brasileira, mora em Miami, onde tem um restaurante. “Nos conhecíamos de vista, passamos a conversar por MSN, telefone, até que, dois meses depois, vim ao Brasil ver o que acontecia”, conta ela, que, na época da entrevista, estava de férias por aqui.
Passado um mês desse primeiro encontro, foi Fernando quem se deslocou até Miami, depois que Carol adaptou seu apartamento. “Lá, redescobri meu corpo e reaprendi a lidar com a parte sexual”, lembra ele, que perdeu todos os movimentos e a sensibilidade da cintura para baixo. “O prazer pra mim sempre foi uma coisa completa e nunca dependeu só do ato da penetração. O carinho, o toque, tudo isso é importante. Hoje eu continuo tendo ereção, mas dou mais valor aos detalhes, como o beijo, a respiração, o cheiro da mulher”, admite, antes de resumir: “Agucei um lado que antes não dava tanto valor”. Carol, a namorada, completa: “A gente não deixa de fazer nada que os outros casais fazem. Até faço coisas que às vezes não rolavam com outros namorados”.
Livre de novo
Três meses depois da colisão, em outubro, Fernando se internou na unidade de Brasília da rede pública Sarah Kubitschek, referência em reabilitação no país. Lá, teve as 24 horas de cada dia focadas em descobrir como seria a vida em uma cadeira de rodas: desde aulas para aprender a arrumar a cama até tomar banho e cozinhar. Fernando, porém, queria um método de reabilitação, digamos, mais acelerado. “Vou correr a São Silvestre em dezembro”, comunicou ao médico. “Impossível! Você está se recuperando. Se quebrar as mãos, pode prejudicar seu processo de reabilitação”, retrucou. Mas ele foi direto ao ponto: “Doutor, se eu quebrar a mão, você conserta. Se eu quebrar a cabeça, não. Preciso de um foco, de um objetivo, senão eu morro”.
Fernando correu a prova de 15 quilômetros para cadeirantes e terminou em décimo lugar, com um pneu furado, as mãos em carne viva e duas certezas: “De que era capaz de qualquer coisa e de que aquele, definitivamente, não era o meu esporte [risos]”.
“O prazer pra mim sempre foi uma coisa completa e nunca dependeu só do ato da penetração. Hoje eu continuo tendo ereção, mas dou mais valor aos detalhes, como o beijo, a respiração, o cheiro da mulher”
O esporte que daria um rumo a sua vida dali pra frente apareceu por acaso. Ainda no hospital Sarah Kubitschek, entrou pela primeira vez num caiaque. Ali, se sentiu diferente. “Em cima da água, tive minha liberdade de volta. Podia ir aonde quisesse”, esclarece. Hoje, aos 30 anos e dois de prática, é bicampeão mundial de paracanoagem e o primeiro brasileiro na história a ganhar uma medalha de ouro em mundiais na modalidade. Agora, sonha com a Paraolimpíada. “A canoagem não era um esporte olímpico, mas se tornou dois meses depois que ganhei o Mundial. Meu foco é conseguir chegar em 2016”, aposta ele, que, entre as 13 tatuagens espalhadas pelo corpo, reserva espaço no bíceps direito para desenhar o símbolo da Olimpíada. Até chegar lá, a rotina de treinos continua: duas horas por dia, seis vezes por semana, rema na raia da USP e pratica musculação.
O acaso vai me proteger
Nascido em uma família de classe média, filho de pais separados (hoje mora com a mãe e o padrasto, no bairro paulistano de Moema), Fernando começou a modelar ainda criança, mas abandonou a carreira na adolescência para tentar ser jogador de futebol e lutador de boxe profissional. Em 2001, ao levar o meio-irmão de 9 anos num teste, caiu nas graças de um booker e se mudou para Nova York. Lá, fez trabalhos para marcas como Abercrombie, Ecko e Calvin Klein. A campanha da Dolce & Gabbana representava o auge de sua carreira. “Hoje, ainda me viro com o dinheiro que recebi desse trabalho. Foi o que me ajudou depois do acidente”, revela.
O convite para participar da campanha foi inesperado. Em 2007, quando aproveitava férias cariocas na praia de Ipanema, o fotógrafo peruano Mario Testino se aproximou. “Ele perguntou se eu sabia quem ele era. Disse que não, só para não dar moral”, conta, rindo. Ele fotografou Fernando e a foto foi publicada na versão alemã da Vogue como o primeiro nu frontal masculino da revista. Em 2008, Testino o chamou para a tal campanha mundial da Dolce & Gabbana.
Foi por acaso também que, em 2001, um olheiro da Globo o abordou durante uma corrida na rua e o convidou para participar de um programa de TV e concorrer a R$ 500 mil. Recém-chegado dos Estados Unidos, precisando de grana e sem saber da repercussão do Big Brother Brasil, Fernando entrou para a segunda edição do reality. “Até aquele dia, sabia que queria ser modelo e trabalhar com esporte. Só que, a partir do momento que você entra em um reality show, todo mundo começa a duvidar de você, a achar que você é fútil e só quer aparecer”, solta ele, que acabou eliminado na terceira semana. A fama subsequente, porém, lhe rendeu alguns trabalhos e um namoro relâmpago com a atriz Danielle Winits.
“Sou muito vaidoso, mas não vou deixar que a vaidade seja maior do que minha felicidade. Não vou ficar dando estímulos elétricos nas minhas pernas para que elas fiquem musculosas”
Fernando não acredita no acaso. Prefere crer no destino. Ao sentar naquele caiaque e sentir sua liberdade de volta, foi isso que ele entendeu. “O acidente fez eu me encontrar. Se hoje não estivesse em uma cadeira de rodas, não sei o que seria ou faria. Por isso, não mudaria absolutamente nada na minha vida. Nem mesmo o dia 4 de julho”, revela. A mãe de Fernando, a comerciante Maria Fernanda Fernandes, pondera: “Ele ter lidado bem com o processo foi uma tranquilidade para todos nós. Mas acho que ainda existem partes amortecidas que só serão resolvidas com o passar do tempo”.
Sem limites
Por falar em tempo, Fernando não o poupa quando o assunto é vaidade. É do tipo que corta o próprio cabelo e leva as roupas na costureira – mesmo as que não precisam de ajustes – “para ficarem com a minha cara”. “Sou muito vaidoso, mas não vou deixar que a vaidade seja maior do que minha felicidade. Se não estou mais dentro do padrão, não vou ser menos feliz por isso”, discursa. “Não vou ficar dando estímulos elétricos nas minhas pernas para que elas fiquem musculosas, só porque hoje são finas. Tenho outras prioridades. Mas, claro, quero ter a cadeira mais legal, um físico bonito”, resume. Carol, a namorada, interrompe: “Ele tem uma postura tão independente que muitas vezes saio do carro e esqueço de pegar a cadeira de rodas no porta-malas. Vou andando, achando que ele vai vir atrás”, descreve.
Fernando tem certeza de que, mais cedo ou mais tarde, isso vai acontecer. Prevê que, numa média de cinco a dez anos, a medicina vai ter evoluído com as pesquisas sobre células-tronco – elas ajudariam a regenerar os nervos do local da lesão. “Assim, entro para a história como o modelo bicampeão mundial de paracanoagem – quem sabe campeão paraolímpico – que saiu andando com as células-tronco”, idealiza. Se aproveitando de sua frase preferida: “E, por não saber que era impossível, ele foi lá e fez”.