Quando a gente despe um homem

por Mayra Azzi
Tpm #155

Em casa, numa manhã mansa, Daniel segue a rotina, se deixa fotografar e mostra sua palmeirinha de estimação: “É meu vínculo fictício com Ernest Hemingway”


Daniel Luhmann é hipnótico. Acho que tem a ver com espaço e atenção. Quando ele te olha, abre caminho. Quando fala, quando dança ou quando prepara um cigarro, se concentra como um monge. Seus movimentos são imprevistos e oferecem certa ousadia, mostrando que, sim, gosta da troca. É o tipo de gente que rapidamente puxa das pessoas uma profunda admiração. Em certa noite de bebedeira entre amigos, Daniel declarou a vontade que tinha de ver sua vida privada registrada. Curioso. Daniel é um rapaz peculiar. Pesquei a conversa de relance e, sem perguntar quais suas razões, me intrometi: "Ninguém te fotografou ainda?".

Realizei uma série sobre o cotidiano de mulheres. No momento em que apareceu a oportunidade de fotografar um corpo masculino, pensei: "A mulher sempre foi pauta; a aparência feminina sempre foi um objeto central do interesse estético. Mas o que acontece quando a gente despe um homem?". E ali estava diante de mim um cara que merecia ser despido.

Rapaz seguro

Com o corpo rígido, Daniel tem a confiança dos rapazes seguros. Seus 28 anos são perceptíveis no corpo firme, mas deixam dúvida quando observamos o andar preciso e escutamos o papo requintado. Nessas horas, parece um homem mais velho. "O tempo acontece com uma intensidade tamanha, às vezes fico com a sensação de ter vivido uns 80 anos", diz ele.

Daniel é mineiro de Poços de Caldas, caçula de três irmãos. Trabalha em casa, é tradutor de inglês e francês, escreve e, nas palavras dele, tenta dançar. Fui despertá-lo numa terça-feira de temperatura morna. Ele abriu a porta vestindo uma ceroula branca, sem camisa, o rosto meio amassado e um sorriso franco. Me senti acolhida. A sensação do desconhecido se dissipou e, sem mais barreiras, dei passagem àquele universo particular. "Trabalho e fico em casa a maior parte do tempo, é o meu lugar por excelência, mas faço questão de sempre receber pessoas pra papear e bebericar, a cabeça agradece", diz.

Um apartamento no centro da cidade, uma luz oblíqua, os ruídos constantes acordando devagar. No percurso da entrada à cozinha, onde tomaríamos café juntos, fui assimilando aquela atmosfera, os volumes e os contrastes, as distâncias e as cores. Ainda com a xícara na mão, comecei a fotografar. Sugeri que ele fizesse o que faria numa manhã qualquer. E o segui. O ritual da comida, o fogo, o primeiro cigarro, a louça, o banheiro azul, o espelho. E então chegamos ao jardim. Pensei em me dedicar a observá-lo o mesmo tempo que ele doava às plantas. São as suas "meninas", que dão vida à casa e carregam rastros das suas viagens. "Tento pegar uma muda dos lugares que visito, trazer para a minha casa um pedaço das experiências vividas. É um exercício e tanto aprender o que cada uma delas precisa e, de quebra, ainda limpa as ideias e ajuda a pensar melhor."

Lá pelas tantas, ele me mostra uma palmeirinha comprida com ares exóticos. Conta que a mãe de uma amiga, em viagem à Flórida, foi a Key West para visitar a casa em que Ernest Hemingway viveu de 1931 a 1939. Do chão ela apanhou algumas sementes. Assim que soube da história Daniel pleiteou uma muda. "Fiquei vidrado com a ideia de ter essa palmeirinha junto com as minhas plantas, uma espécie de vínculo fictício com esse grande escritor. É o meu xodó."

Hemingway cultivava plantas tropicais. O presente era uma espécie de palmeira que dá no terreno da casa de estilo colonial do escritor. Aquele teto abrigou a gênese de muitas das mais incríveis novelas e contos do escritor. Amante dessa equação espaço versus produção literária, Daniel se encanta com esse tipo de detalhe das histórias. Da palmeira pula para 1961, em Idaho, e me conta que, já meio atônito, Hemingway tirou sua própria vida com uma espingarda – assim como seu pai fizera anos antes.

Terminadas as fotos, ele me acompanhou até a porta, ensaiando passos de dança com o cigarro na boca. Levei comigo sementes de manjericão na esperança de que elas crescessem lindas como as dele.

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