Em defesa da família

por Milly Lacombe
Tpm #105

Faz três anos que passamos a ser quatro – duas pessoas-humanas e duas pessoas-caninas

 

Estava saindo do trabalho para almoçar e a encontrei ali, deitada à sombra, quando passei para pegar o carro. Lembro de ter visto, de relance, uma bolota branca com manchas pretas estendida entre os pneus de um automóvel no estacionamento da editora. A bolota gemeu e eu parei para olhar. Não devia ter um mês de vida.

João, minha companhia para o almoço daquele dia, disse com seu sotaque pernambucano: “Danou-se. O
bichinho quer ir com você”. A possibilidade de voltar para casa com um vira-lata cheio de vermes era tão grande quanto a de me engajar na causa que visa chamar a atenção para a morte por atropelamento do
tamanduá-bandeira nas estradas do país. Então, pensando em retrospectiva, não consigo entender o que
me fez abaixar e pegar a pequena cadela.

Difícil também saber como fomos parar, João e eu, no veterinário, sem almoçar, esperando que a bolota alvinegra fosse avaliada e medicada. São momentos que voltam à cabeça quando questiono a coragem que me visita de tempos em tempos. Porque, francamente, só um bravo conseguiria ter feito o que eu fiz em seguida.

“Oi, meu amor. Hoje vou chegar em casa com uma cachorrinha para morar com a gente”, disse para meu objeto de devoção pelo telefone – muito debilmente, a fim de conquistar alguma simpatia.

Minha memória protetora e seletiva impede de trazer à tona o que foi por ela respondido, mas alguns trechos, se eu buscar com afinco, voltam: “loucura”, “absurdo”, “inconsequente”, “porque não é você que
vai cuidar” e “não se fala mais nisso” foram usados.

Ainda assim, porque é a coragem da ignorância a força que me move cotidianamente, apareci em casa com um cachorro debaixo do braço.

E, para deixar a cena ainda mais aterrorizante, já com um nome. “Esta é a Cora”, disse quando meu objeto de obsessão abriu a porta. Informação que ela pareceu não captar, talvez distraída pelo monólogo nervoso que dirigia às paredes enquanto ziguezagueva pelo hall.

O meu amor, quando está muito bravo, não consegue ficar parado em um mesmo lugar e não fala diretamente com um interlocutor apenas, mas com vários, mesmo que eles, aparentemente, não estejam ali. O que é quase um alívio porque, quando seu olhar finalmente cruza com o meu, tenho o ímpeto de concordar com tudo o que ela diz. Se ela soubesse que, na maior parte das vezes, estou apenas pensando “meu Deus, como é bonita”, enquanto vou concordando com a cabeça em ritmo cadenciado, ficaria ainda mais nervosa.

À indignação de minha mulher, juntou-se a de Mila, a lhasa-apso dourada e invocada que minha irmã havia “abandonado” com 1 ano de vida em nossa casa meses antes.

Portanto, naquela noite, estávamos assim: meu objeto de paixão andava pra lá e pra cá enumerando contratempos futuros que seriam certamente causados pela nova cachorra; Mila, indignada com a inesperada concorrência, latia maniacamente para o teto; eu pensava:“Como essa mulher é bonita”; e Cora, talvez captando a vibe da rejeição, fazia o básico: cagava.

Estimulada pelo que deve ter sido um superatômico-concentrado vermífugo, a minúscula cachorra fez cocô, em questão de minutos, no hall de entrada, no lavabo, na sala, na escada e, outra vez, no hall – comprometendo ainda mais as chances de ganhar um lar.

Doce loucura

Diante da hecatombe, meu objeto de sedução e eu passamos a noite com luvas, mangueira e variadas formas de sabão lavando tudo e tentando reestabelecer o bom cheiro da casa. E Mila passou a noite latindo como uma loba no cio e avançando em Cora, que, enquanto corria para salvar a própria vida, cagava um pouco mais. “O que eu fui fazer?”, era o único pensamento que me ocorria quando, quase meia-noite, saí para comprar desinfetante.

Faz três anos que levei uma vira-lata para dentro de casa. Três anos que passamos a ser uma família
de quatro – duas pessoas-humanas e duas pessoas - caninas. Assim que o vermífugo completou seu destino, Cora nos mostrou quem realmente era: uma cadela hiperativa, capaz de pular na altura de nossos ombros (acrobacia que ela faz várias vezes ao dia, inclusive em visitas), veloz como uma lebre anfetaminada, dócil, carinhosa, companheira, feliz como uma vencedora da Mega-sena acumulada medicada com Prosac e apaixonada por Mila.

Mila, por outro lado, entendeu que estava reservado a ela o papel de líder supremo da matilha e ficou
encantada com tanto poder, passando de cadela raivosa e abandonada para cadela pimpona com autoestima de super-herói. Enquanto isso, meu objeto de adoração desenvolveu com Cora uma relação
simbiótica de grude e afagos e mimos e beijos capaz de me excluir do bando – e de meu lugar na cama – em certas noites de lua minguante. E eu, três anos depois, me orgulho de ter cometido, naquela tarde de segunda-feira, uma pequena, inconsequente e doce loucura e formado essa família tão estranhamente minha.

A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

 

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