As mães são muito chatas, muito mesmo, grudamos nos filhos com uma solicitude viscosa
Nós, mães ocupadas e trabalhadoras, somos personagens de um novo conflito: o da filha que sonha com uma mãe ao modo antigo, que não tem vida própria
Costumo dizer a meus pacientes: “Mãe só tem uma, graças a Deus...”. As mães são, somos, muito chatas, muito mesmo, grudamos nos filhos com uma solicitude viscosa. Quando presentes, somos ostensivas, grandiloquentes, mas, apesar disso, todo filho se queixa de algum tipo de descuido.
Coraline é personagem de um filme de animação (Coraline, direção de Henry Selick, história de Neil Gaiman). Ela só tinha uma mãe, aliás, bem parecida comigo: do tipo que dividia os olhos entre a filha e o teclado do computador e a deixava livre para brincar, mas de tal maneira que a menina se sentia abandonada. Os pais dela escreviam sobre plantas, mas não cuidavam do próprio jardim. Sua casa era árida, a comida ruim, feita pelo pai. Também me identifiquei com eles, por tantas vezes ter ficado escrevendo sobre crianças em vez de me dedicar à verdadeira infância das minhas filhas em tempo integral. Sempre resta uma culpa.
O buraco é mais embaixo
Coraline sonhava com outra família: uma casa cálida, cheirando a comida fresca e gostosa feita por uma mãe prendada. Quanto aos pais, não deviam ter vontade de fazer mais nada além de brincar com ela. Já o jardim de seus anseios era uma floresta viva de espécimes mágicos e impressionantes. Ela encontra tudo isso num mundo paralelo, ao qual tem acesso através de um buraco na parede, com um único agravante sinistro: nele, seus “outros pais” são iguais aos dela, mas eles têm botões no lugar dos olhos...
Esse mundo paralelo existe para todos nós. Freud o chamava de Romance Familiar do Neurótico, no qual imaginamos que até poderíamos ser adotivos, filhos de uma família mais nobre. Curiosamente, essa fantasia clássica encontrou uma nova fórmula, sobre a qual tenho escutado em meu consultório, a da filha que sonha com uma mãe ao modo antigo, do tipo que alimenta, agasalha e não tem vida própria.
Porém, Coraline caiu numa armadilha: aquela mãe tão atenciosa era na verdade uma bruxa de aparência aracnídea; o ninho agradável não passava de uma ilusão, uma teia destinada a prender a menina para roubar-lhe os olhos. A bruxa nutria-se de olhos infantis, com os quais aumentava seu poder maligno.
Essa “outra mãe”, em cujo mundo Coraline ingressa por um túnel, numa espécie de parto ao contrário, ainda vive oculta dentro das mães ocupadas, trabalhadoras, como eu. É aquela que possui um calor que atrai, mas é como uma cobra que hipnotiza para melhor devorar sua cria. Se essa personagem materna assusta tanto, é porque a desejamos em fantasia como a que esse filme capta: essa é a mãe da primeira infância.
Mamãe pode até ser a presidente da República, médica, motorista, mas, para nós, será sempre uma dragoa de quem queremos ser o maior tesouro, sobre o qual ela passe a vida sentada em cima, defendendo-nos. Hoje, a vida real de mães e filhos passa longe da caverna da dragoa, mas, no ofício da maternidade, sempre oscilaremos entre dois opostos que se complementam: a mãe boa, que nutre e aquece, e a mãe aranha, que aprisiona na sua teia para melhor devorar. A vida pode ser arrojada, mas as fantasias são conservadoras.
Diana Corso, 48, é psicanalista. Vive em Porto Alegre, tem duas filhas, escreve quinzenalmente no jornal Zero Hora e é coautora do livro Fadas no Divã. Seu e-mail: dianamcorso@gmail.com