De tudo resta um pouco

por Redação
Tpm #72

Sempre deixaremos os vestígios de nossos dentes na personalidade daqueles que se aventurarem dentro de nós - e vice-versa

 
Amar é despersonalizar-se. Aos nossos ouvidos isso mais parece palavrão. Deveria ser assim: a gente escolhe, na hora em que bem entende, alguém que case com nosso modo de ser e estar; e, uma vez encontrado aquele que se molda ao nosso desejo, ficaremos com ele tanto quanto nos convier. Além disso, a separação não deveria nos destruir, depois de cada fim poderíamos voltar sem maiores traumas para o ponto de partida, abastecendo-nos de nossos ricos recursos pessoais. Quanta idealização há nessa pretensiosa fantasia contemporânea!

Na contrapartida disso, está a imagem que fazemos das relações estáveis: uma pessoa confinada à outra ao longo de uma vida interminável, acarretando a anulação de uma ou ambas as partes às necessidades do matrimônio e o inevitável empobrecimento que disso decorre. Também não é bem assim.

Não gostamos de saber que nos identificamos uns com os outros, quer sejam amantes, parentes ou amigos. Quanto mais amorosamente envolvidos estivermos, mais parecidos com eles ficaremos. Mas odiamos admitir que precisamos deles! Concebemo-nos como self made people, autônomos, independentes. Por isso gostamos de acreditar que os nossos amores sejam experiências descartáveis.

Camaleoas

Claudia Tajes, uma escritora muito bem-humorada, lançou um livro de ficção chamado Louca por Homem (Histórias de uma Doente de Amor), pela editora Agir. São variações sobre o mesmo tema: amar é mimetizar-se. Ela conta várias histórias de amor vividas pela mesma mulher. Graça é uma professora de geologia meio desmiolada que se apaixona perdidamente por sucessivos homens, totalmente diferentes um do outro, transformando-se a cada relação. É uma amante camaleônica, uma mulher Zelig.

Depois de cada uma dessas jornadas amorosas, ela sai com uma característica do amado recém-perdido dentro da sua personalidade. Assim, quase se converte ao judaísmo, fica obcecada por limpeza, descobre a poesia, o prazer de fumar, o sexo tântrico, há a fase dos bares, dos esportes e assim por diante. Ela se cura dos aspectos obsessivos de cada um desses amores, mas incorpora algumas capacidades ou qualidades adquiridas nessas relações.

Como qualquer uma de nós, a professora em questão precisa sair da casa dos pais, sentir-se segura para conquistar um lugar no mundo, e consegue isso viajando por vários braços masculinos. Dessa volta ao mundo em 11 paixões, descritas no livro, ela retorna transformada e transtornada. Por mais que a pessoa amada seja muito parecida conosco, a relação sempre será uma terra estrangeira onde aprenderemos novos costumes, um amor sempre nos legará alguma coisa diferente, um novo paladar, hábito ou modo de ver a vida.

Não adianta fazer cara de esfinge: de cada encontro sairemos marcados, assim como deixaremos os vestígios de nossos dentes na personalidade daqueles que se aventurarem dentro de nós. Amar é transitivo.
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