Milly: ”Aonde Roberta ia, Rodolfo ia atrás. Eram uma dupla e eu não iria separá-los”
Aonde Roberta ia, Rodolfo ia atrás. E, quando nosso casamento acabou, nunca houve dúvida a respeito da guarda: eram uma dupla e não seria eu que iria separá-los
A verdade é que Rodolfo sempre preferiu Roberta. E ela, consciente da preferência, tratou de facilitar as coisas para ele: me chamava de mamãe-ruim e se autodenominava mamãe-boa. Em contexto: “Rod, meu nego, mamãe-boa tem que ir trabalhar. Você terá que ficar com a mamãe-ruim. Boa sorte, eu tento voltar o mais rapidamente possível”.
Acontece que mamãe-ruim era a única capaz de disciplinar Rodolfo, o “mini-micro-maltês” com potencial para ser o cachorro mais mimado da história, que compramos durante uma inofensiva ida a um shopping da cidade. “Rodolfo, não faça xixi no tapete!” “Rodolfo, desce da cama, você está imundo.” “Rodolfo, é apenas o liquidificador sendo usado, não precisa querer avançar no eletrodoméstico.” E, naturalmente, sobrava para a mamãe-ruim a função de adestrar também Roberta: “Roberta, para de dar a comida do seu prato para o cachorro!” “Roberta, quantas vezes já pedi para não colocar ele na cama quando imundo desse jeito?” “Roberta, Rodolfo precisa ficar em cima da mesa enquanto você trabalha?”
E assim passamos quase cinco anos. Aonde Roberta ia, Rodolfo ia atrás. Quando Roberta chorava, Rodolfo deitava perto de seu rosto e ficava encarando. Quando Roberta gargalhava, Rodolfo abanava o rabinho e dava saltitos. E, quando nosso casamento acabou, nunca houve dúvida a respeito da guarda: eram uma dupla e não seria eu que iria separá-los.
Logo depois, agora como amigas, voltamos a nos frequentar de forma regular, retomando idas ao Pacaembu, jantares, telefonemas, e-mails e mensagens de texto. Mas Rodolfo entendeu que, mais do que nunca, eles estavam juntos. O “enfim sós” empavonou aquele cachorro minúsculo de forma irreversível. Numa espécie de bolsa canguru, Roberta passou a levá-lo para jantares em restaurantes dog-friendly, para aquele chope no fim de tarde com amigas, para flanadas de fim de semana pelos Jardins. Rodolfo era o cara.
Recomeço
Nas ocasiões em que aparecia para visitar, ele passava vários minutos latindo em minha direção. Quando late enfezado, Rodolfo levanta o queixo, olha para o teto e vai dando uns passinhos ritmados para trás, o que torna impossível acariciá-lo; era preciso esperar o monólogo acabar
para começar a paparicá-lo. Eu entendia perfeitamente aqueles latidos: era ele comemorando o triunfo sobre mim. Não ligava porque sabia que Roberta e eu jamais nos perderíamos, e que ele teria que me engolir para a eternidade.
Mas aí a vida jogou sobre nossas cabeças seu manto mais sombrio e arrancou Roberta daqui, assim, de supetão, durante um fim de tarde ensolarado de sexta-feira.
Em dezembro, passei na casa dos pais de minha ex-mulher para resgatar Rodolfo, que ficaria comigo até o final de janeiro. A casa, um lugar grande e que vive cheio de filhos e de netos e de gente paparicando aquele que é o cachorro mais branco do mundo, sempre foi um segundo lar para Rodolfo; era onde o deixávamos quando íamos viajar e é onde ele se sente à vontade. Por isso, depois do acidente, optamos por uma espécie de guarda compartilhada. Nas ocasiões em que tivessem
que se ausentar e deixar Rod sozinho, ele ficaria comigo. Dessa vez, quando cheguei, Rodolfo não latiu. Em vez disso, veio andando, ergueu o queixinho, me olhou de baixo para cima e abanou o rabo. Quando abaixei para alcançá-lo, lambeu meu rosto e secou minhas lágrimas.
Ao contrário
Coloquei Rodolfo na bolsa canguru e parti com ele para casa. Lá, foi apresentado a Cora e Mila, a vira-lata e a lhasa apso. Vendo a concorrência, deu uma rosnadinha-marca-território e saiu andando todo pimpão em direção ao sofá, onde esticou as patinhas da frente para me dar o comando de que queria subir. Fui até ele e o coloquei para cima, e lá se embolotou. À noite, não me restou alternativa a não ser deixá-lo subir na cama. Imediatamente encontrou um lugar no meio das minhas pernas e foi ali que ficou até o sol raiar. Na hora das refeições, me peguei dividindo o prato com ele: um para mim, um para o Rod. Quando chegou o momento de trabalhar, foi quase sem perceber que o coloquei sobre a mesa, ao lado de meu computador. No dia de minha terapia, meti Rodolfo na bolsa canguru e apareci com ele na consulta. Para o jantar com amigos no restaurante fino do bairro, cheguei acompanhada, para deleite dos garçons e da clientela. Toda a minha rígida cartilha canina de valores educacionais estava sendo rasgada, e eu me sentia cada vez melhor.
Passamos juntos a virada do ano, com Rodolfo latindo freneticamente para os fogos de artifício, como faz para o liquidificador até hoje. Quando me via chorando, vinha correndo secar as lágrimas que teimavam em escorrer sem nenhum tipo de aviso prévio. Todas as manhãs, íamos comprar o jornal, um trajeto de poucos metros, mas percorrido por ele a passos muito lentos e contemplativos. Se eu ganhasse dez centavos para cada vez que Rodolfo levanta sua patinha traseira na rua já poderia parar de trabalhar.
Durante mais de um mês, não nos desgrudamos. De vez em quando, olhavamo-nos como só conseguem fazer aqueles que compartilham de um mesmo grande amor e de uma mesma dilacerante dor. E depois saíamos para passear, ver o céu, falar da vida, do que vem depois e lembrar episódios de um passado tão nosso, tão doce e tão fundamental.
A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com