Campeã do MMA, a lutadora prepara o corpo para a volta ao octógono
Atletas donas de corpos esculpidos e fortes também sofrem para administrar a balança e se encaixar em padrões determinados. A campeã de MMA Cris Cyborg derrotou todas as adversárias e se prepara para ser considerada (de novo) a melhor do mundo, depois da suspensão por doping
Na década passada, a norte-americana Gina Carano era a estrela imbatível de MMA (artes marciais mistas, em inglês). Acumulava sete vitórias em sete combates na categoria peso-pena (até 66 quilos). Seus cachês no campeonato da Strikeforce, organização mais importante de MMA, superavam US$ 100 mil. Aos 27 anos, exibia boa técnica no solo, era forte, ágil, agressiva. E... linda. Os traços finos e o corpo musculoso – mas de curvas intactas – surgiam quase como uma ofensa ao mundo brutal de um esporte em que, se não vale tudo, vale muita coisa: chutes, cotoveladas, socos, torções, tapas.
Há quatro anos, a carreira de Gina Carano chegava ao auge a ponto de a lutadora começar a escapulir do octógono para uma vida de capas de revista e telas de cinema. Fazia poucos meses, ela assinara um contrato para protagonizar, ao lado de Antonio Banderas e Ewan McGregor, o thriller A toda prova, de Steven Soderbergh.
Até o dia em que tomou uma surra humilhante, dessas de aposentar qualquer lutador – o que, aliás, aconteceu de verdade. No dia 9 de agosto de 2009, Gina Carano foi a San Diego, na Califórnia, defender o título contra a brasileira Cristiane Justino Venâncio dos Santos, a Cris Cyborg – pela primeira vez, uma disputa feminina chamava mais a atenção do que os combates masculinos. A desafiante curitibana, que receberia apenas US$ 25 mil pelo combate, não precisou de mais do que 5 minutos para encerrar a luta, e a carreira da musa do esporte nos ringues. O desempenho de Cris, sua força e agressividade eram tão expressivos que logo fãs e especialistas passaram a lhe colar elogios como “a melhor lutadora de todos os tempos” – ou, um pouco à sorrelfa, o apelido de “a Mike Tyson do MMA”.
No ano seguinte, mais dois nocautes rápidos e incontestáveis trouxeram à tona o primeiro adversário realmente capaz de derrubá-la: a falta de oponentes. Cris era tão superior às demais que não havia nenhuma lutadora disponível – nem disposta – a enfrentá-la. Passou mais de um ano parada.
“As pessoas me olhavam e diziam: ‘que mulher forte’. Chama a atenção, parece um ET”
“Desanimei. Antes, vivia de dieta, não tomava refrigerante, comia certinho. Mas, depois que isso aconteceu, passei a pensar diferente. Só me preocupava com dieta perto das lutas.”
Em dezembro passado, Cris voltou a se preocupar com dietas. Retornaria, enfim, ao Strikeforce, para encarar Hiroko Yamanaka. A luta? Durou 16 segundos. Uma saraivada de socos botou a japonesa na lona. Mas, numa virada de fato surpreendente, Cris perdeu o cinturão. E mais: foi banida do esporte até 2013. Ela havia sido pega no exame antidoping. Deu positivo para estanozolol, um esteroide anabolizante. Cris Cyborg acabava derrotada pelo próprio corpo.
Perder peso é talvez o inimigo mais duro na vida de um lutador. Uma briga que dura meses e se torna infernal nas semanas que antecedem o evento. “Quando comecei a lutar, eu pesava 69 quilos. Tenho 1,73 de altura. Sempre fui parrudinha”, diz. “As pessoas me olhavam e diziam: ‘Que mulher forte’. Você é diferente, né? Chama a atenção, parece um ET.” Com os treinos, Cris ganhou corpo. Fora de competição, pesa 74 quilos. “Desenvolvi mais músculos. Mas luto na categoria até 66 quilos. Isso significa que preciso emagrecer até chegar nisso... É um sacrifício.”
Às vésperas de um combate, Cris entra num regime especial. Come batatas de duas em duas horas. Bebe muita água. Faz sauna. Em sete dias, elimina do organismo 5 quilos. “É dificílimo porque perco basicamente água e músculo. Às vezes, chego na pesagem e não estou aguentando nem subir na balança. Aí, choro.
Sou chorona”, admite. “Você chega ao limite. E aí, depois da pesagem, ainda precisa comer muito, que é pra poder fazer a luta bem no dia seguinte. É estressante lidar com esses extremos em tão pouco tempo.”
Na temporada de treinamentos que precedeu o confronto com Hiroko Yamanaka, um amigo da equipe de Cris lhe ofereceu um produto. Ele garantia que era um composto para facilitar o regime. “Eu não sabia que continha uma substância proibida. Não faz sentido, né? Sempre fiz os exames antes e depois de qualquer luta. Nunca tomei nada pra me dar mais força”, conta. “Aí, num vacilo... Foi um momento muito difícil. Porque confiava nessa pessoa. Mas o erro foi meu. Fui amadora. Devia ter procurado um médico antes de tomar qualquer coisa”, lamenta. E continua: “Estendo isso a outras situações. Quantas mulheres – que não são profissionais como eu – se metem em dietas absurdas, usam suplementos por conta própria pra perder peso? Isso não é desculpa, aprendi a minha lição. Nunca, mas nunca mais, tomo nada sem essa orientação”.
Nascida para lutar
Fora do octógono, no apartamento pequeno que ocupa numa região tranquila e cercada de árvores em San Diego ou correndo todos os dias ao lado de Fedor, cão da raça labrador que Cris nomeou em homenagem ao campeão russo Fedor Emelianenko, ela pouco lembra o híbrido de homem e máquina que carrega como sobrenome. Pessoalmente, é tímida e doce. Tem dificuldade para confiar nas pessoas. Diz, com voz grossa, que conta com poucos amigos, mais homens que mulheres. Explica que se dedicou ao esporte desde criança, e que estudou em bons colégios e cursou faculdade de educação física graças às bolsas que arranjou por seu desempenho como atleta. “Sempre, sempre gostei de esportes. Treinava handebol, mas, se faltasse alguém no basquete, no futebol ou no que fosse, lá estava eu. Cheguei a praticar até heptatlo [esporte olímpico que consiste em sete modalidades de atletismo]”, conta.
“Eu não sabia que continha uma substância proibida. Não faz sentido, né? Sempre fiz os exames antes e depois de qualquer luta”
Durante uma dessas competições foi convidada pelo pai de um colega para fazer um treino de muay thai, o boxe tailandês, na academia Chute Boxe, berço dos campeões Wanderlei Silva, Maurício Shogun Rua e Anderson Silva, a maior estrela do MMA. “Era a pessoa mais descoordenada da face da Terra”, diz Cris, aos risos. “Mas aí conheci o Rafael Cordeiro, um dos melhores mestres do esporte. Passei a treinar diariamente.” Shogun lembra dessa época. “Quando o mestre Rafael soube que ela estava treinando com os homens, suspendeu a Cris por uma semana [risos]! Mas ela nunca foi tratada como café com leite e hoje é a melhor lutadora do mundo.” O ex-treinador Rafael também não esconde a satisfação ao falar da pupila: “Ela é muito talentosa e dedicada, já finalizou vários lutadores faixa preta em jiu-jítsu, apesar de ainda ser faixa roxa. Tenho orgulho de vê-la brilhando e de ter feito parte da carreira dela”.
Quem não gostou da nova profissão foi dona Goretti, mãe de Cris. “Ela achava que era coisa de ‘maloqueiro’. Às vezes, chegava de olho roxo em casa e tinha que me esconder”, explica. “Ela quase arrancou os cabelos quando tive que trancar a faculdade por falta de tempo.” Cris passou a treinar com os profissionais. Era a única mulher entre 40 homens. “Às vezes, apanhava e ia embora chorando. Mas, no outro dia, voltava.”
Nessa época, começou a namorar o lutador Evangelista “Cyborg” Santos, de quem herdou o nom de plume. “Ele era todo grandão, cheio de tatuagens, pintava a unha de preto e eu pensava ‘meu Deus, como é que vou apresentá-lo para minha mãe?’.” Casaram seis meses depois. Logo em seguida Rafael abriu uma academia em Huntington Beach, na Califórnia, e conseguiu fechar uma luta para Cris contra a norte-americana Shayna Baszler. A brasileira venceu. “Depois disso, tudo mudou. Passei a ser conhecida e há três anos, quando fiz a minha terceira luta nos EUA, já organizada pelo Strikeforce, decidimos nos mudar. Aqui as pessoas me davam mais atenção, era mais fácil para arrumar patrocínio, fazer mais dinheiro.”
“Às vezes, apanhava e ia embora chorando. Mas, no outro dia, voltava”
Cris Cyborg ainda sofre preconceito por ser pioneira em uma profissão masculina. “Tem uns machistas aí... Eles fazem piada, falam mal. Dizem que pareço um cara. Tenho o maior orgulho de entrar no ringue e bater igual a homem. Treinei pra isso, me dediquei.” O contra-ataque da atleta consistiu numa mistura de paciência, persistência e vaidade. “Tento mostrar que mulher pode lutar e ser feminina. Toda vez que vou ao ringue, pinto as unhas de preto, peguei isso do Cyborg. Virou meio que um ritual nosso. E faço as minhas trancinhas, para meu cabelo não ficar parecendo uma juba de leão. Acho legal mostrar o corpo de atleta. Só não uso maquiagem porque eles não deixam.”
Na mesma época em que encarou o drama de ter sido pega no doping, Cris se separou de Evangelista. “Viver a dois é difícil pra todo mundo. E a rotina de um lutador é estressante. Agora, imagina dois lutadores convivendo 24 horas por dia.” A crise pessoal foi sendo domada aos poucos. Afastada do MMA até 2013, Cristiane passou a se dedicar ao jiu-jítsu. Em junho, venceu pela segunda vez a medalha de ouro no mundial que aconteceu em Los Angeles, na categoria faixa roxa. “Estou buscando novos desafios. Tenho muitos planos. Quero abrir uma academia e ajudar crianças. O esporte é capaz de fazer tanto...” Além disso, é possível que Cris antecipe a volta ao octógono. “Não posso lutar aqui nos EUA até dezembro, mas fora posso. Vou ver se faço uma exibição no Brasil nos próximos meses”, diz.
Outro sonho é a maternidade. “As pessoas dizem que depois de me tornar mãe vou me aposentar. Mas não me imagino fazendo isso tão cedo. Quero que meus filhos me vejam lutando”, diz. Por isso, a meta é reconquistar o título no Strikeforce. “Não gostaria de ser lembrada somente pela única coisa errada que fiz – e por inocência minha. Principalmente no Brasil, que é o meu país. Tenho uma função. Quero poder continuar fazendo mais pelas mulheres no MMA, sabe? Acho que ainda tenho muitas portas pra abrir para as mulheres.”
Vai lá: www.criscyborg.com