Sobre personagens das ruas geladas. E sobre dar e receber para esquentar o coração
São Paulo, de repente o frio! Separei um dos meus edredons brancos para a Cacetão, a moradora de rua que já foi protagonista desta coluna há alguns anos, quando a conheci. Passeando com um namorado pela rua deserta na madrugada, uma voz surgiu de uma bagunça de coisas, perguntando o que eu fazia na cadeira de rodas. Lembro que demorei pra entender se Cacetão era homem ou mulher. Desde então, quando passeio a pé pela noite, paro pra trocar ideias com ela, que pesquisa e sabe coisas a meu respeito.
Geralmente, quando passa alguém na rua em meio à nossa prosa, ela me apresenta: “Conhece a Mara, nossa deputada?”.
Durante o dia, circula pelo bairro, come no supermercado, faz social. Foi nessa situação diurna que descobri que Cacetão manca e usa vestido. De longe, por trás do vidro do carro, vi que era mulher.
Quando chega a noite, monta sacos de lixo estendidos sobre seus caixotes, concebendo um puxadinho retangular que consegue abrigar todo o seu corpo.
O edredom chegou branquinho e cheiroso nas mãos de Cacetão, porém recebeu um olhar crítico. E um tom de indignação:
– Eu não posso aceitar isso!
– Por que, Cacetão? Tá frio.
– Porque eu já tenho muita coisa, olha aqui.
E mostrou aqueles poucos caixotes, com uma panela, uma roupa, uma garrafa PET. Quando eu a conheci, tinha um pato que morava num carrinho de feira, mas ele não estava mais lá e fiquei sem jeito de perguntar o que acontecera com o companheiro ave.
E depois completou: “Além de tudo, é branco, e quando chover vai ficar imundo e não tenho facilidade pra lavar”.
Estarrecida nesse fabuloso (no sentido da grandiosidade e não da fábula) mundo do “muito pouco que é muito”, Cacetão fisgou um pensamento e, percebendo que aquele edredom poderia virar um bem do Popeye, fez uma fala cheia de ciúme: “Não vai dar isso ao Popeye. Ele muda de roupa todo dia, compra tudo no brechó. Ele não precisa”.
Desalento
O Popeye é outro morador de rua que mora no nosso quarteirão. Só que dorme no posto de gasolina e passa fácil por segurança. Quando ele viu o edredom chegando, esticou a mão para pegá-lo. Apertando-o contra o nariz, disse: “Jamais recusaria isso, tão cheiroso e branquinho. A Cacetão não quis, né? Como ela é orgulhosa...”.
Na vida a gente dá ao outro aquilo que acreditamos que somos e que temos. Quem não tem nada para dar, vive no desalento.
Depois de uns dias, chega na minha casa um quadro de araras pintadas com capricho e emoldurado. Assinava Sofia. Liguei na portaria e me disseram que uma mulher de táxi havia entregado.
Só esta semana recebi a notícia de que Sofia é o nome de Cacetão.
*Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br