Como se constrói um guerreiro

por Redação
Tpm #81

 
Olho Francisco e vejo ali a alma de um boêmio, um homem crescido, rodeado de partituras e das sensíveis perturbações da alma daqueles que arriscam ir mais fundo

Francisco não queria ir dormir. Francisco nunca quer ir dormir porque acha que dormir é perda de tempo. Francisco, definitivamente, não gosta de dormir. Francisco gosta de Power Rangers,Homem-Aranha, instrumentos musicais e melodias e, para alegria do pai, de Fórmula 1. Esse é, aos 5 anos e meio, o mundo de Francisco. Assim, para colocá-lo na cama, dependendo da noite, é preciso muita negociação. A educação moderna manda negociar – parece ter chegado ao fim a época do autoritarismo paterno e materno. Justo agora que cresci. E eu olho Francisco de perto e vejo ali a alma de um boêmio, enxergo um homem crescido rodeado de partituras, instrumentos musicais e das sensíveis perturbações da alma daqueles que arriscam ir um pouco mais fundo. Que grande loucura deve ser fazer um outro ser humano, penso ao ver minha irmã e meu cunhado lidando com as excentricidades de Francisco. Há alguns meses, um ano, talvez, estava em sua casa quando Francisco anunciou que queria ir ao banheiro.

– Ele vai sozinho? – perguntei à minha irmã, que estava ocupada com o caçula.

– Vai, mas daqui a pouco precisa ir limpar.

Por algum motivo que não me ocorre, esqueci de ir ao banheiro resgatar o rapaz. Depois de pelo menos 20 minutos, me lembrei e, cheia de culpa católica, saí correndo. Entrei agitada e ele estava sentadinho na privada, mãos no queixo, tronco para a frente, olhando a parede. Virou o rosto ao me ver, mas não saiu da posição.

– Acabou?

– Acabei.

– Posso te limpar?

– Agora não, por favor. Estou pensando e quero ficar sozinho. Volta depois.

Levemente assustada, fui para a sala e contei a minha irmã o que ele tinha dito.

– Ele disse que acabou, mas não quer ser perturbado, precisa ficar sozinho.

– Ah, é. Ele precisa de um tempo para ele durante o dia.

– Desde quando?

– Sempre.

Hora certa para a coisa errada
Recentemente, Francisco avisou que seu nome seria Hassenor (“Fala Rassenor, mas escreve com H”, informou com a notícia da mudança). Aparentemente, Hassenor é um guerreiro medieval que voltou para salvar este mundo. Não custa torcer. Dias depois, anunciou que atenderia a partir dali por Haznak (pronuncia-se Rassnak).

– O que aconteceu com Hassenor? – perguntaram os pais.

– Haznack é o apelido do Hassenor.

Semana passada, a mãe o levou ao pediatra para uma consulta regular. Na sala, enquanto minha irmã conversava com o médico, ele, entediado, encontrou uma dessas cadeiras giratórias, sentou e começou a girar freneticamente. A mãe mandou parar. Ele parou por um minuto e sim que percebeu que não era mais o foco das atenções retomou a órbita.

– Francisco, você está fazendo a coisa errada, no lugar errado, na hora errada – sentenciou minha irmã, cheia de razão e poder, certa de que seu argumento acabaria com a brincadeira de uma vez por todas.

Francisco interrompeu a rotação, encarou a mãe e disse, muito sério:

– E qual é a hora certa para fazer a coisa errada? – tratava-se de uma informação essencial para evitar futuras broncas, naturalmente.

Outro dia, minha irmã chegou em casa e o encontrou de pé no quarto encarando o aquário.

– O que aconteceu, meu filho?

– Mãe, peixe respira embaixo d’água?

– Respira, meu filho.

De imediato, o menino pareceu intrigado. E, logo depois, nervoso.

– E como peixe morre então, mãe, me diz? De tiro?!

Por que agora?
No dia que Francisco nasceu, lembro de ter ido à maternidade, segurado o menino no colo e tentado imaginar quem seria aquela pessoa que era um pouco de mim. Hoje, quase seis anos depois, Francisco começa a dar dicas do adulto que será e eu me pego imaginando que a única coisa que quero é ficar por aqui tanto quanto for possível para acompanhar a trajetória desse cara e dos outros sete que carregam alguma coisa de meu DNA. Que grande loucura deve ser ter um filho. Ou a grande loucura seria não tê-los? Aos 41, eu talvez tenha perdido a vez, mas a existência dessa população criada por minhas irmãs e por meu irmão sempre ajudará a atenuar o deslize. Ou, quem sabe, minha mulher, que ainda tem muito tempo para decidir,me convença a encarar essa doce maluquice com ela e me presenteie com um outro ser humano novinho em folha que carregará com ele, por dentro e por fora, um pouco da beleza dela, e que eu terei o enorme prazer de ajudar a formar – e o enorme prazer de me deixar, por ele, educar. Quem sabe.

Mas, como eu ia dizendo, Francisco não queria ir dormir. A mãe e o pai tinham saído e ele estava sob os cuidados da Nonna, que, embora faça parte da geração de pais totalitários (se não me engano, era a líder deles), tentava, como uma avó moderna, negociar a boemia do menino.

– Francisco,você precisa ir para a cama agora, amanhã tem aula.

– Por que eu preciso ir agora?

– Para poder descansar bastante e acordar descansado. Não é bom saber que amanhã você vai se sentir bem depois de uma boa noite de sono?

– Nonna, amanhã não existe. As pessoas ficam falando nele, mas, agora, ele não existe. Então, vou ficar.

Quando as encucações da vida batem, podemos sempre contar com as palavras de Haznack, o guerreiro que veio salvar o mundo. Não custa torcer. E que grande e adorável loucura deve ser fazer um outro ser humano como Francisco.
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