Coisas estranhas que acontecem à noite

por Milly Lacombe
Tpm #109

Milly Lacombe conta como foi a noite em que quase não dormiu por causa de um travesseiro

Formamos nosso time de travesseiros de maneira pensada e customizada. E tudo funcionou bem até você se transformar em uma gatuna na madrugada

Recentemente você adquiriu a mania de virar de lado na cama de madrugada e agarrar meu travesseiro. É um hábito novo, para o qual eu não estava preparada.

Dormimos juntas há quase seis anos e, durante todo esse tempo, você se mostrou bastante comportada, pelo menos em relação aos travesseiros, sabendo muito bem quais são os meus, e, especialmente, qual é aquele maior que eu gosto de abraçar e, ao mesmo tempo, de colocar no meio das pernas. Entre todos, e são muitos, esse é o único que não poderia jamais ser roubado.

Aliás, quando ficou claro que estávamos morando juntas – e não me lembro mais em que ponto nosso casamento foi oficializado, lembro apenas de ter sido, de tudo o que já fiz na vida, a mais natural das coisas – formamos nosso time de travesseiros de maneira bastante pensada e customizada: vários pequeninos porque você gosta desses, um compridão, que seria o meu, e três em tamanho convencional, um deles mais vazio do que os demais porque você disse que queria um travesseiro mais baixo.

E tudo funcionou perfeitamente bem, cada uma com os seus, até que, há semanas, você decidiu se transformar em uma gatuna de travesseiros na calada da noite.

Pensando em retrospectiva, talvez a bandidagem tenha começado com aquela gripe.


Em busca do travesseiro perdido

Você ficou mal, toda molona e dengosa, como você sempre fica quando está doente, e, sem conseguir respirar adequadamente, teve dificuldade para pegar no sono. Aí, quando acordei sem travesseiro no meio da noite, e saí tateando a cama pelo meu, percebi que você o agarrava como se ele fosse uma boia depois do naufrágio em alto-mar.

Apoiada em um cotovelo, fiquei olhando você dormir (e respirar fazendo aquele barulhinho que eu tanto amo) tentando entender como poderia tirar o travesseiro de suas garras sem necessariamente acordar você, que tinha demorado tanto para chegar naquele estágio de sono.

Depois de alguns minutos, quando meus olhos finalmente se adequaram à pouca luminosidade, percebi que talvez pudesse puxá-lo para baixo sem comprometer sua posição na cama – e seu sono, consequentemente. Bastava ter cuidado e me movimentar como um gato, pensei.

Comecei a fazer força, mas você gemeu um gemido que me soou bastante bravo e, o que parecia impossível, em seguida agarrou o travesseiro com mais força e determinação. E eu, que vez ou outra tenho alguma noção do perigo, me coloquei em posição de estátua.

Quando achei que era seguro me movimentar novamente, passei para o plano B, que era procurar um travesseiro livre pela cama. Mas, para meu completo desespero, não havia um.

Nessa noite, você tinha dois debaixo de sua cabeça, outro na altura de seus braços, alguns pequeninos dando apoio aos maiores e o meu grandão fazendo o papel da boia em alto-mar.

Tudo o que havia disponível para mim na cama eram dois pequeninos, desses que você gosta de trazer de viagens de avião, sabe Deus por quê.

Tive que me virar com esses troços minúsculos e duros que nem deveriam ter status de travesseiro, sabendo que valeria manter o espírito semialerta para o caso de você abrir a guarda.

Mas não demorei a perceber que não conseguiria pegar no sono sem um travesseiro decente e voltei a sentar na cama, fitando você na esperança de que abrisse os olhos voluntariamente – o que me isentaria de qualquer culpa.

Seu corpo no meu

Funcionava quando Adriana, minha irmã, fazia isso comigo e eu acordava assustada com aquele rosto perto do meu dizendo: “Levanta! Vamos perder o ônibus outra vez por sua causa!”, e em seguida minha mãe rompia quarto adentro marchando em minha direção como um soldado prestes a abater o inimigo.

Por que não funcionaria com você se, por tantos anos, funcionou comigo?

Pensando nas manhãs de horror de minha infância, abaixei o tronco, coloquei meu rosto muito perto do seu e fiquei esperando você abrir os olhos.

Depois de alguns minutos, você finalmente parecia que ia se mexer e eu então prendi a respiração e me afastei. O plano era, quando você acordasse, fingir que eu também estava acordando naquele instante, e, casualmente, notar que estava sem travesseiro, momento em que pediria gentilmente o meu de volta e a noite seguiria sem outras turbulências.

Mas você não estava se mexendo de fato, eu logo notei. Era apenas um espasmo, desses que você tem assim que começa a dormir e que me fazem ter certeza de que você está indo embora: seu pé pressiona o meu contra o colchão, repetidas vezes e de forma quase cadenciada, e, com o movimento, vem uma gemida muito leve, e também ritmada. É quando você normalmente me abraça mais forte e eu entendo que ver você dormir é meu espetáculo predileto.

Só que nessa bendita noite o espasmo serviu apenas para aprofundar seu sono e sedimentar um pouco mais todos os travesseiros debaixo de seu corpo e de suas garras.

Voltei a deitar, agora de costas para você, tentando me conformar com meu destino naquela noite.

Acho que tinha acabado de pegar no sono quando senti você vindo para cima de mim, deixando seus braços caírem sobre meu ombro e uma de suas pernas se entrelaçar às minhas.

Fiz as contas muito rapidamente: se um de seus braços estava sendo usado para me abraçar, então era porque você tinha soltado o meu travesseiro. Mas, quando ia me mexer na tentativa de resgatá-lo, você veio com o quadril e pressionou meu corpo mais forte contra o seu, gemendo aquele gemido que me deixa toda boba. Em seguida, me agarrou como se agora fosse eu a boia em alto-mar.

Nessa hora tudo entrou em perspectiva.

Quem precisa de acessórios quando, no meio da noite, você é convocada pela mulher amada para fazer o papel do travesseiro fundamental?

E, com seu corpo todo misturado ao meu como se fôssemos de fato a mesma substância, finalmente consegui pegar no sono.

A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu email: millylacombe@gmail.com 

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