Ficar em família me fez ver que a vida oferece novas chances para sentir velhas coisas
Paulo devia ter uns 5 anos quando eu o convidei para bater bola comigo no quintal da casa em que ele morava. Estava de férias no Brasil e mal conhecia meu primeiro sobrinho, que nasceu três anos antes de eu ir morar na Califórnia. Paulo era pequeno demais para entender que em lares relativamente normais – que não é o caso do nosso – tias trintonas não saem convidando sobrinhos para jogar bola no meio da tarde. Nem passam mais de duas horas ensinando garotos que mal sabem correr a chutar com a perna esquerda “porque só assim você terá o recurso de finalizar com as duas pernas e driblar para os dois lados”. Eu dizia esse tipo de coisa, o menino olhava para cima me encarando sem falar nada, esperava um pouco para saber se eu teria alguma outra coisa que ele não conseguiria decifrar para dizer, pegava a bola e saía correndo outra vez.
Paulo talvez não entendesse por que eu me dedicava tanto àquilo, mas certamente se divertia com a brincadeira que nos fazia correr, gritar e suar. Passávamos horas chutando uma bola, ensaiando dribles, colocando os vasos de minha irmã em risco, e era sempre muito bom saber que eu era a detentora do conhecimento e da técnica: eu driblava Paulo como queria, para o lado que quisesse e ele nunca tirava a bola dos meus pés. Considerando-se que estamos falando de uma criança de 5 anos e de uma mulher que então tinha 29, a palavra que mais se encaixa talvez seja covardia. Mas o fato é que Paulo me olhava com uma bola nos pés e via um craque, e eu tirava enorme estima disso.
A vida seguiu assim, eu soberana naquele ambiente que envolvia uma bola de futebol e meu sobrinho, até que um dia meu drible parou nas pernas do garoto. Paulo não notou que havia tirado a bola dos meus pés, e simplesmente continuou a correr. Mas eu fiquei estática: aquele era o primeiro dia do fim do meu reinado e, pior, eu tinha ampla consciência disso.
No último feriado, fui viajar com minhas irmãs, com Paulo e com meus seis outros sobrinhos, que nasceram todos na esteira do primogênito. Paulo tem hoje 16 anos, 1,83 metro de altura e já faz algum tempo que eu não consigo driblá-lo nem se cobrir seus olhos com uma venda. Quando me meto a explicar coisas sobre o futebol, Paulo agora olha para baixo, me encara e emenda com perguntas para as quais eu nem sempre tenho respostas. Continuo tentando impressioná-lo, porque acho que é isso o que fazemos eternamente com aqueles que amamos de forma visceral, mas talvez já não tenha tanto sucesso, embora Paulo insista em demonstrar por mim um tipo de amor e de admiração que eu nunca imaginei ter na vida, e que nunca deixa de me emocionar.
Deitada no sofá lendo um livro, vejo Paulo de calção de banho correndo pela grama perto da piscina, chutando bola com um amigo. Como ele pôde fazer isso comigo? Como cresceu tanto? Como raciocina com tanta rapidez? Como não percebe que eu o enganei durante tanto tempo? Como pode continuar a me amar desse jeito mesmo sabendo que eu não jogo bem?
A tia que joga muito
Deitada no sofá, vejo Paulo, a cada dia mais alto e forte, arrastando seus músculos longilíneos pela grama atrás de uma bola. Já não estou nessa imagem. Mas é claro que eu poderia parar com o drama, simplesmente levantar e ir até lá jogar com ele. Ele nunca me impediria de jogar, mesmo achando levemente patético a tia quarentona tropeçando na bola. Mas procuro me abster da iniciativa na esperança de que na memória dele eu sobreviva, para sempre, como a tia que joga muito – que era como ele, por muitos anos, me apresentava aos amigos.
Deitada no sofá, simplesmente me entrego às penitências do tempo, coloco o livro de lado e fecho os olhos.
Até que uma voz de criança me tira do transe melodramático:
– Quer jogar bola?
É Marcelo, 5 anos, o caçula, devidamente uniformizado com a roupinha oficial do São Paulo. É a primeira vez que vamos todos juntos à casa de veraneio de minha irmã e, portanto, não há outra resposta para essa pergunta a não ser: sim, agora mesmo. Vou para o meu quarto, pego uma camisa do Corinthians, dou a mão para Marcelo – que já tratou de agarrar uma bola e acomodá-la como pôde debaixo do bracinho – e, juntos, começamos a andar em direção ao campinho que fica nos fundos da casa.
Antes de sair, dou uma olhada para Paulo, que continua de calção, batendo bola com o amigo na grama perto da piscina. Paulo não me vê, e eu ainda vejo nosso passado. Sozinha, me pego rindo da vida, que, maluca como é, insiste em oferecer novas chances para sentir velhas coisas. Olho para baixo e vejo Marcelo, tão pequeno quanto Paulo naquela primeira tarde em que batemos bola.
“Você sabe chutar com a perna esquerda?”, pergunto. Ele balança a cabeça negativamente. “Pois então vamos treinar agora mesmo porque chutar com as duas pernas é fundamental para ser um jogador acima da média.” Marcelo levanta os ombrinhos como quem claramente não entendeu o que eu quis dizer, aperta o passo e me conduz.
* A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br