Carta a M. sobre Carta a D.

por Redação
Tpm #78

Um amor é um lugar no mundo, funda-se um país particular, uma linguagem, um modo de habitar determinado espaço e tempo

 
Mário, acabei de ler o livro que teu amigo te deu de aniversário: Carta a D.: História de um Amor. O livro é uma carta aberta, um manifesto de amor duradouro, mas também o balanço final da relação de 58 anos de André Gorz com Dorine Keir. O escritor André era um judeu austríaco que viveu o intenso século 20, navegou pelas águas do existencialismo, do marxismo, foi uma das figuras inspiradoras das idéias de Maio de 68, precursor do pensamento ecológico. Dorine era uma inglesa que iniciava uma carreira teatral quando se conheceram, mas que dedicou a vida à parceria com o companheiro. Ela suportou seus intermináveis períodos de escrita silenciosa, acreditou em sua obra na época em que ele era um desconhecido, mas também estabeleceu relações, organizou arquivos, colocou questões. Foram dois estrangeiros que se estabeleceram na França, mas nunca se acomodaram, foram pensadores inquietos pelo resto da vida.
Dorine adoeceu por causa de um contraste que lhe havia sido injetado num exame, sofreu dores intensas e incuráveis durante décadas. Ele mudou sua vida para adequar-se à fragilidade dela. A carta é escrita em março de 2006, marcada por um amor urgente, imprescindível. Nela está dito: “Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro”. E assim foi feito, em setembro de 2007, André e Dorine, já octogenários, decidiram que seria a hora do ponto final.
Indaguei sobre tua leitura: disseste que o livro te deixou um pouco inquieto com as palavras de André, ele te pareceu demasiado autocentrado, pouco atento a Dorine. De fato, ele escreve que pensava assim: que quando mais jovem seu amor por ela não lhe parecia motivo de orgulho, por isso a carta tenta fazer justiça à companheira, afinal reconhece-lhe os créditos, dedica a ela sua vida e sua última obra. Disseste que tua antipatia talvez se devesse à identificação com ele. Nada mais injusto, meu querido, pois quando li ocorreu-me o mesmo, também me identifiquei com ele!

Um mais um
Escrevemos juntos há tanto tempo que já nem sei como é pensar sem tua escuta. Cada um de nós possui focos, acervos e estilos diferentes, mas aprendemos a sintetizar, desenvolvemos a arte da interseção. Quando Dorine queria casar-se, André questionou-a assim: “O que nos prova que em dez ou 20 anos nosso pacto para a vida inteira corresponderá ao desejo do que teremos nos tornado?”. A resposta dela foi de que o que eles iriam tornar-se seria o resultado dessa convivência: “Nós seremos o que fizermos juntos”.
Como eles, somos um casal de estrangeiros, talvez todos o sejam. Um amor é um lugar no mundo, funda-se um país particular, uma linguagem, um modo de habitar determinado espaço e tempo. Já faz quase três décadas que nos dedicamos a isso. Talvez nunca consigamos ser tão atentos um ao outro como gostaríamos, mas tampouco consigo pensar em viver sem ti.
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