Um amor é um lugar no mundo, funda-se um país particular, uma linguagem, um modo de habitar determinado espaço e tempo
Dorine adoeceu por causa de um contraste que lhe havia sido injetado num exame, sofreu dores intensas e incuráveis durante décadas. Ele mudou sua vida para adequar-se à fragilidade dela. A carta é escrita em março de 2006, marcada por um amor urgente, imprescindível. Nela está dito: “Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro”. E assim foi feito, em setembro de 2007, André e Dorine, já octogenários, decidiram que seria a hora do ponto final.
Indaguei sobre tua leitura: disseste que o livro te deixou um pouco inquieto com as palavras de André, ele te pareceu demasiado autocentrado, pouco atento a Dorine. De fato, ele escreve que pensava assim: que quando mais jovem seu amor por ela não lhe parecia motivo de orgulho, por isso a carta tenta fazer justiça à companheira, afinal reconhece-lhe os créditos, dedica a ela sua vida e sua última obra. Disseste que tua antipatia talvez se devesse à identificação com ele. Nada mais injusto, meu querido, pois quando li ocorreu-me o mesmo, também me identifiquei com ele!
Um mais um
Escrevemos juntos há tanto tempo que já nem sei como é pensar sem tua escuta. Cada um de nós possui focos, acervos e estilos diferentes, mas aprendemos a sintetizar, desenvolvemos a arte da interseção. Quando Dorine queria casar-se, André questionou-a assim: “O que nos prova que em dez ou 20 anos nosso pacto para a vida inteira corresponderá ao desejo do que teremos nos tornado?”. A resposta dela foi de que o que eles iriam tornar-se seria o resultado dessa convivência: “Nós seremos o que fizermos juntos”.
Como eles, somos um casal de estrangeiros, talvez todos o sejam. Um amor é um lugar no mundo, funda-se um país particular, uma linguagem, um modo de habitar determinado espaço e tempo. Já faz quase três décadas que nos dedicamos a isso. Talvez nunca consigamos ser tão atentos um ao outro como gostaríamos, mas tampouco consigo pensar em viver sem ti.